• Carregando...
 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Pra começar deixando tudo mais que claro. Eu (e a torcida do Flamengo) não li Svetlana Alexievich. (Aliás, poucas vezes a expressão “e a torcida do Flamengo” terá vindo mais a calhar…)

Pra deixar outra coisa bem clara, eu também não vejo nada a reclamar aqui. Acho bem interessante que o jornalismo literário tenha esse espaço. Ryszard Kapuscinski podia ter levado anos atrás, por exemplo.

Veja também

Mas certa grita de “danou-se tudo: o grande prêmio literário foi pra uma escritora de não-literatura” merece ser discutida. Primeiro, lembrando que, pelas descrições da obra da tal Alexievich, parece que o que ela faz na verdade trafega numa fronteira bem estranha entre o documental, a reportagem e a elaboração estética. Em tempos em que o próprio romance está continuamente forçando as fronteiras do biográfico e do ficcional, talvez de fato esse prêmio seja curiosamente adequado.

Pense em Karl Ove Knausgård e seu radical projeto de autobiografia literária. Ou em Elena Ferrante… Pense, aqui entre nós, em Cristovão Tezza e seu “O Filho Eterno”. A margem que separa a realidade da ficção nunca foi tão questionada dentro da própria literatura.

De novo, talvez fosse a hora mais exata de premiar uma jornalista.

(Sem nem falar que não é a primeira vez: Winston Churchill ganhou o Nobel de literatura!)

Mas tem outra coisa.

As pessoas (até porque o Nobel é o único prêmio internacional de literatura) tendem a pensar que a missão do prêmio é a de laurear os melhores escritores de todos. A cada momento.

Mas não é bem assim. E num certo sentido nem a Academia Sueca, que escolhe os vencedores, teria capacidade de determinar que fosse assim. Ou exclusivamente assim.

O nosso amigo Alfred “Dinamite” Nobel, lá com seus dramas cármicos no fim da vida, deixou uma grana em testamento pra garantir a entrega do prêmio “em perpetuidade”. E nesse mesmo testamento ele estabelece que o papel do prêmio de literatura é reconhecer obras de escritores de destaque, e que trabalhem “numa direção ideal”.

Definir essa direção, e essa “idealidade”, já deu muito pano pra manga.

É claro que se pode argumentar em termos puramente estéticos, e determinar que a direção ideal da literatura é a de produzir uma obra literária ideal. O que, tudo bem, é meio circular, mas podia servir de “saída” pra gente não ter que entrar em dilemas éticos.

Mas o negócio é que, dadas mesmo as condições de vida, do sucesso, e da dor de consciência do velho Alfred, é meio difícil ignorar que o sentido da palavra sueca idealisk naquela frase é realmente moral. Ele pretendia que o prêmio fosse concedido a escritores que, se não lutassem para “mudar” a humanidade para melhor, pelo menos não atrapalhassem muito esse esforço.

Dizem que foi por isso, por exemplo, que nos seus primeiros anos o Nobel de literatura conseguiu deixar de fora praticamente todos os escritores mais importantes do mundo.

James Joyce.

Marcel Proust.

Henryk Ibsen.

Liev Tolstói.

Anton Tchekhov.

A gente pode entender que eles não tenham premiado Kafka, que morre pra todos os efeitos inédito e desconhecido (como Fernando Pessoa). E eles acabaram premiando Thomas Mann. Mas, meu, que lista de excluídos!

Henry James!

O argumento aqui seria que a obra desses cabras é, digamos assim, ambígua em termos “morais”.

É claro que tende a ser justo essa ambiguidade o que nos leva a reconhecer nesses autores sua complexidade e seus méritos. É claro que, pra mim pelo menos, essa é a direção idealisk do fenômeno literário.

(Sem contar que, pô, Tolstói queria ser santo!)

Mas parece que os acadêmicos suecos pensaram diferente.

Em tempos mais recentes, a interpretação tem se encaminhado até pro ativismo mesmo.

Mo Yan.

Alexievich.

Le Clézio e a ecologia.

Claro que o mérito literário continua no horizonte. Alice Munro, por exemplo, tem quase nada de “atitude” social e política. Mas é uma tchekhoviana de mão mais que cheia.

Só que o fato é que um certo “moralismo” deve mesmo ser de se esperar nas decisões de Estocolmo. Reza a lenda, por exemplo, que a premiação de Elfriede Jelinek (tudo menos uma defensora dos santos valores da família e da sociedade) gerou até a saída de um membro da academia…

Se neste caso pudermos unir o útil ao agradável, ora, tanto melhor.

(Mas ela nem escreve literatura!

Pois sei lá. Nem li. Ainda.)

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]