Você conhece aquele exercício mental do trem? Aquele das duas linhas?
É assim: você está operando um daqueles trecos, aquela alavanca (desculpa, esqueci o nome) que serve pra fazer o trem ir pro ramal A ou B. Tipo uma bifurcação.
Descendo a linha vem uma composição gigante. Sem freios. Descontrolada.
Na linha A, pra onde se nada for feito o trem vai seguir automaticamente, estão acampadas 17 pessoas. Você opera o treco à distância. Não tem como gritar, não dá pra se comunicar com as pessoas. (É um exercício mental, ok?)
MAS na linha B, pra onde o trem pode ir se você usar a tua alavanquinha, tem só UM cara. Igualmente inamovível, pra fins desse pequeno experimento ético.
Na impossibilidade de deter o trem ou retirar as pessoas, a pergunta, obviamente, é: você aciona a alavanca?
E decreta ativamente a morte de um, mesmo que pra salvar os 17?
Que que eu quero com esse exemplo?
Te dizer que nem o estatuto absoluto da santidade da vida humana é cem por cento automático. Pode, sim, haver momentos em que alguém tenha tido que decidir contra a vida de uma pessoa. Maravilha que não fui eu, nem você. Mas isso pode estar na mesa.
Nem a santidade da vida humana é totalmente santa. Diante, por exemplo, de outras vidas humanas. E só. E olha lá…
E isso que essa santidade é basicamente a única coisa em que eu consigo pensar, em termos de “valor absoluto”. O resto, todo, é sempre relativo, sempre argumentável.
Por isso é que eu odeio, odeio, odeio com toda a força do meu coraçãozinho mirrado todo e qualquer discurso do absoluto. Todo e qualquer discurso que, por mais que esteja defendendo algo inequivocamente bom, se negue a aceitar oposição. Se negue a discutir adversativas.
Eu sou discípulo do velho Montaigne e de toda a tradição de gente sabida de quem ele era discípulo. Tudo aceita um MAS. Tudo tem que aceitar, ao menos como discussão, a possibilidade de um MAS.
Mas….
O discurso religioso ocidental, por exemplo, muitas vezes tem a manha de negar qualquer MAS. Eis aí, provavelmente, uma das raízes do meu desencanto.
Ativistas, em geral, pelo próprio tipo de envolvimento passional que têm, por vezes caem na mesma esparrela.
Eu adoro bicicletas, acho que uma cidade cheia de bikes é um milhão por cento melhor que uma cidade de carros. Sem nem pensar duas vezes.
MAS eu não suporto a demonização do motorista, a criação de um “inimigo”, a recusa a discutir qualquer cláusula que pareça não suportar categórica e irrefletidamente o cicloativismo. Tanto quanto não suporto quem quer banir os ciclistas etc…
Semana passada houve a questão da proibição do uso de animais de tração pelos carrinheiros de Curitiba.
Eu não quero ver bicho algum sofrer. Eu sou casado com uma mulher que sente na própria carne o sofrimento de qualquer animal. Eu sofro com ela. E, assim, com eles. Como qualquer pessoa civilizada.
MAS… mas sempre um mas. Porque eu como carne, por exemplo, o que do meu ponto de vista meio que inviabiliza a minha posição humanitária… (e, de quebra, a de uma CACETADA de ativistas…)
E, outra, eu acho que o texto do meu irmão a respeito do assunto, por exemplo, ia na veia ao apontar o cinismo de se proibir que os carrinheiros trabalhem com os animais sem que houvesse a preocupação de se estabelecer, por exemplo, o valor de uma indenização compensatória.
Eu penso isso.
Você pode pensar diferente.
Eu acho canalha falar em “alforria” dos animais. Acho ofensivo pros escravos de ontem e de hoje.
Tudo bem?
MAS…. a gente pode conversar.
A não ser que você seja do tipo repulsivo que acha que um “mas” nessa discussão automaticamente me qualifica como uma aberração.
A não ser que você seja do tipo (humanitário) que decide comentar, embaixo do texto do Rogerio, que se ele achava assim era melhor ele, e a sua família, serem entregues aos carrinheiros pra puxar carga embaixo do sol.
A não ser que você seja do tipo (cheio de boas intenções) que recomenda, com essas palavras, o fuzilamento do jornalista.
A não ser que você seja do tipo (de coração pleno de doçura) que diz que conhece gente importante e vai fazer ele perder o emprego.
Era o meu irmão mais novo, minha carne, meu gêmeo de espírito. Quer saber, taí um outro absoluto pra mim: minha família, minha mulher, minha filha…
Olha só, eu não lembro teu nome. Não quero lembrar.
Eu não vou lá procurar.
MAS você é um monstro podre. Sem mas nem meio mas.