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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Só agora é que eu fui assistir ao “Jogo da Imitação”, sobre o grande Alan Turing (1912–1954). O filme é dolorosíssimo em função do que aconteceu com um gênio absoluto, unicamente porque ele gostava de meninos, e não de meninas.

Mas gente melhor que eu já falou disso. Assim como dos méritos do seu Turing.

O que me interessa hoje é falar de um negócio que, no filme, é mencionado de passagem, a ponto de quase não ser percebido. E que é uma das histórias mais bonitas de criptografia que eu conheço.

(Sim, eu conheço histórias de criptografia. Comecei a ler sobre isso na adolescência. Por quê? Vai encarar?)

O negócio é que os aliados, como sabe todo mundo que viu o filme, estavam doidos pra quebrar os códigos gerados pela máquina Enigma, dos alemães. Guerra, afinal, sempre foi questão de informação. Eles interceptavam trocentas comunicações em morse, todo dia, mas não conseguiam decodificar. Acabaram conseguindo, e mudando o rumo da guerra. Está lá no filme.

Mas o negócio é que, antes de eles quebrarem o código, as meninas que operavam os receptores de telegrafia (e eram quase todas meninas) descobriram que, apesar de não saberem o que as mensagens queriam dizer, elas tinham uma sensibilidade afiada o suficiente pra identificar qual telegrafista alemão estava enviando os códigos. Tipo pelo ritmo do envio, pela “pegada” do cabra.

(Curioso é que, entre guitarristas, se fala muito em “pegada”, de novo pra se referir a esse algo, intransferível, que identifica certos músicos numa só nota. Sem exagero.)

Elas começaram a dar apelidos a esses caras e brincar com isso.

Mas logo perceberam que isso não era só leviandade. Que com isso elas podiam, por exemplo, traçar um mapa dos deslocamentos de um mesmo operador (conforme a origem dos sinais interceptados). E com um cruzamento simples de dados, era possível determinar, digamos, que o Operador X estava com a Divisão Panzer Z. E depois de determinar isso, era só receber uma mensagem de X para ficar sabendo onde os tanques da Z estavam.

Legal, né?

Sem decodificar uma palavra, elas estavam extraindo informação das mensagens. A partir de quê? Do estilo dos telegrafistas.

Poucas vezes o famoso epigrama que diz que o estilo é o homem teve uma manifestação mais concreta e quantificável.

Aliás, vale lembrar que a nossa palavra estilo vem da palavra latina que se referia, não aos textos de uma pessoa, exatamente, mas à canetinha de ponta seca que você usava pra escrever nas tabuletas de barro que eles usavam.

Ou seja, você dizia, por exemplo, que aquele texto, apesar de não estar identificado, tinha a “caneta” de sicrano. Uma assinatura muito mais difícil de imitar.

O grande Oscar Wilde uma vez escreveu pra um jornal e disse que não iria assinar a carta, mas que mesmo assim sabia que seria identificado. Pelo seu estilo.

Às vezes, em aulas de sociolinguística, eu brinco com os alunos que a frase diz-me com quem andas e te direi quem és podia, de um ponto de vista estritamente linguístico, ser abreviada para diz e te direi quem és.

A gente começa a transmitir informação antes de comunicar qualquer o quê. Meramente através do nosso como. Do nosso estilo. Da nossa pegada. Do nosso punho, como diziam as telegrafistas de Bletchley Park.

Agora, o fato de serem apenas mulheres as pessoas capazes, lá na Segunda Guerra, de fazer essa identificação, já pôde ser lido como uma reafirmação da futilidade feminina. Elas estavam ali reconhecendo estilos enquanto os homens (e eram quase todos homens) da criptanálise tentavam ganhar a guerra decriptando o que era então o código mais impenetrável de todos os tempos.

Mas para pra pensar.

O estilo pode muito bem ser o homem. E aquelas mulheres, antes de tudo, sabiam quem eram aqueles caras.

Por baixo e por trás de todo ruído e confusão, elas viram direto as identidades. O cerne.

Meu….

Chega a dar medo.

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