Eu estava em Belo Horizonte.
Com dois colegas da USP, eu era a bancada “de fora” que avaliava os 15 candidatos a uma vaga de professor na UFMG. A gente teve uma tarde de folga.
Nesse dia a gente resolveu ir, a pé, do hotel até a lagoa da Pampulha, pra ver a arquitetura modernista etc.. (aliás: nhé…). Saindo dali, um sol da molesta, a gente pensou em passar no Mercado Central. Comprar queijo, goiabada, essas coisas.
Aí começa a história.
Vamos pegar um táxi. Por alguma razão estava todo mundo sem 3G e, logo, sem aplicativos. Vamos pra uma avenida fisgar um taxista. Somos três. Fica um em cada lado e um (este que vos tecla) no canteiro central, essa maravilha dos oxímoros da língua portuguesa (como é que uma coisa pode ficar no canto e no centro ao mesmo tempo?).
Uns táxis passam cheios.
Perdemos.
Dois, no entanto, passam vazios, mas fazem um gesto de nananinanão com o dedinho. Indo pegar alguém?
Corta pra noite.
Voltando de um jantar com um amigo (grande Carlos de Brito e Mello!), eu pego mais um táxi e puxo lá minha conversinha com o motorista.
Não sei se é verdade mesmo que as pessoas sempre falam do tempo com os taxistas. Eu sempre uso as condições de trabalho deles de assunto. O carro é seu? Está há quanto tempo na praça? Dia fraco, hoje? Indo pra casa ou começando a noite? É bom, isso de trabalhar de noite? E a segurança?
E esse cara, 25 anos de praça, motorista de carro alheio, começando a noite, avesso a acordar cedo, me diz que anda pesado, anda arriscadimais trabalhar de noite. Mas que ele, que em outros tempos já foi temerário e duas vezes “foi pra dentro” de uns caras que quiseram levar seu carro, hoje prefere evitar os riscos.
Duas regras simples, que eu mesmo já ouvi de taxistas em várias cidades.
Um: se o passageiro, num horário suspeito, te pede pra ir a um lugar suspeito, você no meio do caminho simula um problema com o carro, encosta, e deixa a corrida até ali de graça. Tudo pro cara descer.
Dois: rádio, ponto, aplicativo, ok. Mas você evita pegar gente na rua, “dando com a mão”. Especialmente se o sujeito tiver cara de bandido.
Corta pro hotel.
Cheguei cedo (o Carlos tem filha nenê, e eu tinha que estar cedinho na universidade…). Parei na frente dos elevadores mas, de repente, pensei “e se os caras (os colegas da USP) ainda estiverem no restaurante?”. Andei uns dez passos, estiquei o pescoço: nada.
Voltei pra frente dos elevadores.
Aí lembrei que tinha um canto do restaurante que ficava escondido meio atrás do poço dos elevadores. Voltei, dei mais uns 12 passos: nada.
Fui voltando pra frente do elevador e fui interrompido por um “segurança”, muito educado, me perguntando (por causa das minhas idas e vindas?): “o senhor está hospedado?”.
E foi aí que me caiu a ficha.
Porque os dois taxistas nananina da Pampulha tinham sido abordados por MIM. Porque naquela tarde eu não estava com roupa de professor (o sol, lembra…): saí do hotel de camiseta cinza, calça velha (a que eu usei no avião) e desbotada.
E eu sou quase preto. E todo quase pobre é quase preto. E todo quase bandido é quase pobre, e quase preto. Ou quase todo.
Eu, ali, era um passageiro “suspeito”.
Quem acabou conseguindo um táxi foi o Thomas. Que é inglês, ruivo e quase élfico.
Eu, no saguão do hotel, era suspeito. Ou quase.
Eu ri disso tudo. Ou quase.
Eu sou professor universitário, eu hoje transito em meios em que o tipo de racismo que podia me afetar tende a não existir. E aí eu esqueço.
Agora, pense você um momento. Se ponha na minha pele. Ou, melhor, na pele de qualquer outro negro, pardo, escuro…
Imagine, por um momento, o que é passar a vida como alvo de desconfiança. De suspeita. Sem conseguir um táxi na rua enquanto usa uma roupa 120 vezes menos “suspeita” que dos moleques brancos que afetam pose de rapper com boné e capuz escondendo o rosto.
Belo Horizonte tem mais negros que Curitiba.
Quase todos os empregos “baixos” eu vi preenchidos por eles ou pelos seus descendentes. Na universidade, na rua, no hotel. Entre os colegas de banca: nenhum. Entre os candidatos ao concurso: duas: paraenses.
Só pare pra pensar.
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