O filósofo russo Mikhail Bakhtin, cuja prosa não era exatamente abençoada pelas musas da poesia ou da lógica expositiva, tinha uma mão muito boa pra rotular conceitos complicados. O uso que ele faz da palavra “refração”, por exemplo. Ou da noção de “excedente de visão”.
Uma ideia bacana dele é a de que todas as palavras que a gente usa, claro, vieram dos outros. Mas o que interessava pro camarada era o processo pelo qual a gente ia se apropriando daquelas palavras. O processo segundo o qual, pra ele, as palavras “perdiam as aspas”.
E não é bem isso?
Você não lembra de aprender um termo com alguém e aí, quando vai usar, sentir a necessidade de dizer “como diz fulano”…? E depois de um tempo a palavra perde mesmo as aspas.
“Palavras”, “ideias”, “conceitos”…
Mas tem palavras que nunca perdem exatamente as aspas, né? Que continuam como que com a assinatura de quem te ensinou. Palavras tão fortemente ligadas a quem disse aquilo na tua frente pela primeira vez que nunca vão deixar de te lembrar essa pessoa.
Como o meu primo Sandro que uma época deu de chamar coisas “legais”, “bacanas”, de “tutúvis”.
Ou como o meu pai e as dezenas de palavras pomposas que ele gosta de usar ironicamente.
Como a minha filha, pequenininha, que inventou a palavra “desagordimento” pra dizer “infração”.
Ou a minha mulher, que chama de “pino tê” o que na minha infância era “benjamin”.
Dia desses, fazendo palavra-cruzada, aparece lá “a fêmea do elefante”. Ora, sem nem titubear: “aliá”!
E aí você me pergunta, “como é que você sabe uma coisa dessas?” E eu, em vez de responder, como diz o meu irmão (tá vendo!): “eu sei coisas sobre bichos”, te digo, “a minha mãe sabia isso.
Por que diabos a dona Iracema sabia o nome no R.G. da elefanta?
Por que diabos ela me disse?
E eu guardei!
Isso e o nome das três pirâmides do Egito. E dos três filhos de Noé (eu sou um leitor bem episódico da Bíblia, ok?).
Quéops, Quéfren e Miquerinos.
Cam, Sem e Jafé.
Por que ela sabia essas coisas?
Sei lá. Mas ela gostava de saber, e me disse bem cedo, antes de a formação escolar normal poder me fazer saber. E essas coisas (e outras) ficaram bem gravadinhas na minha memória como “sabedoria iracêmica”. E achei divertido ver, naquele dia das palavras-cruzadas, que eu não esqueci, e que eu não esqueci.
O nome da Iracema veio, claro, do romance de José de Alencar. O Alencar inventou o nome a partir de um anagrama da palavra América. Depois encontraram altas etimologias tupis, mas no fundo era um joguinho verbal.
Dona Iracema também gostava de joguinhos verbais…
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