Um dos enganos mais comuns de quem tenta se aproximar da música dita “erudita” e se desencanta é supor que ela foi feita sempre, e só, para ser bonita.
Isso é uma inverdade pelo menos por dois motivos. Um é que ninguém (fora as almas bem-aventuradas do paraíso de Dante Alighieri) aguenta ficar ali parado exposto direto a lindezas. Tudo cansa. Até o bonito. Como dizia uma sábia tia-avó Waldrigues: tudo que passa de ordem é desordem.
O outro motivo é que os músicos são mais inteligentes que isso. Eles querem beleza, sim, mas querem surpresa, estrutura, complexidade, humor, intertextualidade, frustração, dor… feiura, inclusive… vez por outra.
Eu, particularmente, tenho uma relação bem estranha com o “feio”. Na medida (pra dizer de uma vez) em que eu tendo a achar bonito… vá entender.
E eu localizo duas fontes pra isso. Pelo menos.
Uma é o velho Johann Sebastian Bach, que se divertia como poucos introduzindo dissonâncias aspérrimas, doloridas mesmo, no meio das flores e da brisa. Da adolescência pra cá, ele foi me acostumando a procurar esses espinhos e a tirar um prazer enorme deles, o que me levou, quase sem escalas, direto pra música erudita contemporânea já no fim da adolescência.
A outra fonte é mais antiga, e mais, bem mais básica.
Trata-se do senhor meu pai.
Os leitores da Gazeta há muito tempo admiram o meu irmão (mais novo! imagina o meu trauma!), e mais recentemente têm me aturado com mais frequência por aqui. Os leitores da Companhia das Letras neste mês vão receber uma tradução assinada por nós dois juntos (quatro novelas de Saul Bellow).
O Rogerio certamente tirou do Lauro, nosso pai, o interesse pela política e toda uma ética pessoal e, por que não, cívica.
Eu, mais leviano, fiquei com o mais leviano. Porque a influência definitiva que o Lauro teve sobre mim, como tradutor de prosa literária, foi o que ele me legou do que nele era um desprezo sarcástico, irônico, contra toda e qualquer linguagem viciada, especialmente as versões empoladas, pretensiosas, cabotinas.
Um pouco é coisa de quem chegou à vida adulta sob a ditadura, sob o ufanismo de causídicos e de gente que usava palavras como “ufanismo” e “causídico”. Um pouco é diversão mesmo. Ele sempre gostou de usar palavras como “galhardo” e “bimbalhar”, pelo bizarro da coisa.
Se nele há nisso uma certa resistência, uma “negação” de uma visão de mundo e do seu discurso, em mim (repito, mais leviano) a coisa virou só fascínio.
Eu já escrevi aqui, por exemplo, sobre o costume que as pessoas andam tendo de usar o verbo “possuir” no lugar do coitadinho do humildinho do confiável “ter”. Tipo (história real:) “o leite X possui proteínas”. Sério. Li essa hoje no café da manhã.
Mas a questão é que ao mesmo tempo em que eu (1) aceito que a língua muda, e que moda existe e (2) vergasto, vitupero e verbero os biltres vis que “possuem” essa mania [alerta de ironia aqui, ok?], eu também (3) me divirto PACAS trocando nas conversas com a Sandra e a Beatriz todo e qualquer verbo “ter” por um “possuir”. Tipo “eu possuo que ir dormir”. “Não possui a menor chance”. “Possui tempo ainda”.
Porque eu acho engraçado.
Porque eu gosto de coisas engraçadas.
Porque eu (leviano, lembre) tirei da eventual fúria e da constante atenção que o Lauro devota a esse policiamento linguístico, só a parte, que existe pra ele também, da diversão.
E se Beethoven nem sempre quis apenas soar “lindo”, leitores, eu nem vos falo de James Joyce!
E revisando a tradução de um dado episódio do Ulysses que “possui” que soar cansado, como Joyce disse, eu elaborei uma lista de todas as palavras horrendas que queria usar.
Outrossim.
Deveras.
Alhures.
Ademais.
Malgrado.
Porquanto.
E ria que me acabava.
E era tudo culpa do velho Lauro!
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