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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Quando a minha filha era pequena, ela não gostava de ficar sozinha. Ela não curtia a hora que eu terminava de ler pra ela e saía do quarto, pra ela poder dormir.

(Isso, quando ela era bem pequenininha, foi o que me levou a explicar pra ela que eu não ia sumir; que eu ia estar do outro lado da parede do quarto dela: ali no meu quarto. E foi isso o que levou ao momento épico na família em que ela disse pra minha mãe, “pode ir, eu fico aqui: o papai já está me ensinando o que tem do outro lado das paredes”… Ah, se eu pudesse, Beatriz…)

Com ela um pouquinho já mais velha, a gente teve uma conversa sobre isso. Ou várias.

O que a gente mais faz é conversar.

E eu falei que um dia ela ia gostar da solidão. Que a gente PRECISA apreciar a solidão.

De vez em quando a gente lembra essa conversa.

E eu gosto. Tanto de relembrar a conversa quanto dessa solidão eventual.

Eu seria totalmente incapaz de viver sozinho. (Seria totalmente incapaz de viver sem a Sandra, mas isso é outra conversa.) Só que eu gosto dos momentos ocasionais de solidão. Até por saber que eles são intervalos numa vida acompanhada. Eles têm o seu valor. Eu aprecio como posso apreciar a dor generalizada no corpo depois de sair pra correr. Porque sei que é um intervalo num período mais contínuo (ainda) de não-dor.

Quando a gente sabe o que tem do outro lado da parede, esses quartos isolados podem ficar bem menos aterradores.

(Eu sou ateu. Não pense que eu estou falando daquele outro lado. Daquela parede. Eu acho que a gente já tem demais com que se preocupar deste lado aqui, que nesse caso é o único.)

Agora, tem uma imagem de solidão que me assombra. Que não sei bem porque eu nunca consigo esquecer.

É Michael Collins.

Todo mundo lembra de Neil Armstrong (o cara que errou a frase famosa: ele disse “um pequeno passo para O homem, um salto gigante para a humanidade”… e não a versão que ficou conhecida, e que ele queria ter dito, com “UM homem”).

Tem quem lembre de Edwin “Buzz” Aldrin, que desceu até a lua com ele.

Mas quase ninguém lembra do Collins.

Que foi, simplesmente, naquele momento, por sucessivos intervalos de 48 minutos, o homem mais solitário da história da humanidade.

Até hoje.

No Módulo de Comando da Apolo 11, que a cada duas horas completava uma órbita da lua enquanto os outros dois astronautas estavam na superfície, ele, a cada hora e pouco, passava para o “lado oculto” da lua.

E ficava sem rádio, sem comunicação, sem contato visual. Sem ver a humanidade inteira no seu planeta. Sem ouvir. Sem saber.

Sem alguém pra dizer saúde se ele espirrasse.

E pensando que, se desse alguma merda lá embaixo, ele era o cara que ia ter que pisar no acelerador (ou o que quer que ele tivesse que fazer) e voltar sozinho, deixando os dois camaradas lá. (Não havia uma opção de resgate. E o presidente dos Estados Unidos já tinha um discurso preparado, mesmo, caso isso acontecesse.)

Imagine você lá.

Radicalmente só. Cortado de tudo. No escuro. A 300 mil quilômetros do mundo.

Se o “silêncio eterno desses espaços infinitos” assustava Pascal, imagina isso.

Nada do outro lado de uma das paredes… Ninguém.

Ou tudo. Mas, se tudo, um desconhecido igualmente total.

Imagine você lá.

Não sei bem por quê. Não sei se é o tempo, os tempos, a idade ou o mundo. Mas algo me diz que a gente hoje tem muito motivo pra ficar de vez em quando quietinho e pensar naqueles 48 minutos de Michael Collins.

Ele provavelmente estava atarefado demais pra filosofar. Mas, se pudesse? Será que ele teria chegado à conclusão de que aquilo era necessariamente ruim? Só assustador? Bom?

Talvez seja hora de lembrar dele lá sozinho.

Saúde, filha.

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