Em meio a uma tarde muito quente, pensava no que fazer para amenizá-la; o leque trazia-me apenas ares mornos e eu me deliciava molhando a mão na água com gelo, quando alguém me trouxe uma carta, em fino papel do mais puro vermelho, amarrada a um galho de cravina chinesa em plena floração carmesim. Aquilo me fez sentir o calor profundo e a delicadeza que por mim nutria quem me escrevia em meio a tal calor e me levou a abandonar o leque que teimava em usar mesmo sem trazer alívio.
Podia ser um miniconto ou um poeminha em prosa, meio impressionista. Podia ter sido escrito ontem. E é bonito pacas. Mas veio do Japão da virada do milênio. Com um detalhe, trata-se da virada do OUTRO milênio, em torno do ano 1000 d.C.
É um texto, completo, de “O Livro do Travesseiro”, de Sei Shonagon, dama de companhia da corte Heian que pôs no papel uma série de mais trezentos desses “fragmentos”.
O livro está disponível no Brasil em duas traduções. Essa, que eu cito, é mais fácil de encontrar. Foi feita por cinco professoras do curso de japonês da USP, tem centenas de notas e todo tipo de aparato de auxílio à leitura. Saiu pela editora 34.
Só o fato de haver duas traduções de uma obra antiga e algo obscura no Ocidente aponta para a sua importância e a sua relevância. Mas uma breve leitura dos textos de Sei Shonagon mostra o quanto é ainda mais profunda sua conexão com a gente, com a nossa cabeça e os nossos problemas. Mesmo a essa distância, em todos os sentidos.
O livro não tem igual; é uma obra totalmente atípica. São histórias da vida no palácio, com poucas páginas. São reflexões de poucas linhas de extensão. Mas, acima de tudo, são listas.
Umberto Eco já dedicou uma obra toda a elas (“A vertigem das listas”) e seu pedigree cobre toda uma linhagem meio excêntrica da história da literatura. Você pode gostar de Borges, de Rabelais, de Joyce, mas nenhum amor pelas listas há de estar completo sem os catálogos mais do que idiossincráticos de Sei Shonagon. Ela lista de tudo. Coisas que dão medo, Montes, Lagos, Coisas que envergonham ou, como neste outro texto, “Coisas que são desagradáveis de se ver”.
O verso do bordado. Ninhada de ratos pelados que saem rolando do ninho ao se puxar algo. A costura da veste de couro, ainda sem o forro. O interior da orelha de um gato. E, principalmente, um lugar imundo na escuridão.
Uma pessoa sem nada de especial, que não consegue lidar com seus numerosos filhos. Deve ser de desagrado o sentimento do marido quando a esposa por quem não nutre afeto profundo adoece por um período longo.
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