“Os que viram aquele perfil jamais esquecerão o espetáculo de uma incrível máquina de registrar o mundo agora parada, transformada em objeto artístico; uma obra-prima de descanso, junto a uma pilha de cadernos onde o gênio de nosso amigo continuava a viver, como o relógio de pulso dos soldados mortos.”
Quem escreveu isso foi Jean Cocteau, grande figura do meio literário (e cinematográfico!) francês do século 20. Ele pensava na cena que pediu para um então jovem fotógrafo Man Ray registrar: o rosto realmente tranquilo de Marcel Proust em seu leito de morte. O rosto de alguém que, depois de 34 anos de uma vida leviana, se trancou num quarto forrado de cortiça, sem janelas, pra que nem a luz nem o som atrapalhassem, e praticamente sem levantar da cama escreveu, registrou as quase três mil páginas de “Em busca do tempo perdido”.
A gente costuma associar Proust, que morreu em 1922, a esse mundo antigo: belle-époque com cheiro de passadismo. A presença (e a devoção) de Cocteau e de Man Ray deviam fazer um leitor moderno abrir os olhos.
E o fato de que o primeiro livro que o jovem Samuel Beckett publica na vida é um ensaio sobre Proust, então…?
E o que dizer da imagem daquela cabeça contra os lençóis brancos, daquela “máquina de registrar o mundo”, se você for pensar na voz do “Inominável”, romance moderníssimo do mesmo Beckett, onde uma figura incorpórea enuncia, sozinha, coisas como “na minha vida, se é pra chamar isso de vida, sempre houve três coisas: a incapacidade de falar, a incapacidade de ficar em silêncio e a solidão, e foi com isso que eu tive que me virar.”
Proust.
Aquela cabeça, naquele leito de morte, parece estar escondida em muitos lugares.
Na minha vida foi assim (e deve ter sido na de muito leitor por aí). Tentei ler aos 20, estudando francês na UFPR. Li um terço do primeiro volume. Tentei lá pelos 35 de novo. Li o primeiro. Tentei aos 40, li dois volumes e parei por outras tarefas. Recomecei do zero aos 42. Fiz questão.
A cada uma dessas leituras eu me via mais encantado. Quanto mais você mergulha naquele mundo, quanto mais se deixa ir, lentamente (não se pode ler rápido ali: dane-se se vai levar um ano e meio pra terminar os sete volumes!), mais você sente que não quer sair daquele mundo. Daqueles livros…
As digressões podem te cansar, a leitura nem sempre é “fácil”, o andamento é arrastado. Mas a sensação, como diz de novo o personagem de Beckett, parece ser de “Você precisa continuar: eu não consigo continuar: eu PRECISO continuar.”
Aquela cabeça entre os cadernos ainda está longe de ficar em silêncio.
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