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Eu comecei a acompanhar Fórmula 1 acho que tipo em 1980. Era uma coisa que eu fazia com o meu pai, e logo depois com o meu irmão também. Era meio que um ritual de domingo.

Não à toa, parei de ver as corridas quando saí de casa.

Era a era Piquet. Eu adorava o cara. E, como toda criança, torcia com toda intensidade. Quando ele estava atrás, eu tinha mania de ficar imaginando que era capaz de lançar uma âncora pra prender o aerofólio dos carros que iam à frente, pra ver se ele passava.

Logo depois, quando desisti da telecinese radical, eu ficava só desejando que que desse tudo certo pra ele acabar em primeiro. E foi aí que eu desenvolvi uma espécie de teste. Um protocolo de verossimilhança.

O que eu fazia era imaginar a manchete do jornal do dia seguinte (que no meu mundo, claro, seria sobre o Piquet) e ver se considerava aquele texto possível.

“Prost fica sem gasolina na última volta e Piquet vence em Zandvoort”

Verossímil. Logo, podemos torcer por isso.

“Cinco motores explodem e Piquet herda vitória em Estoril”

Menos provável. Logo, melhor ir aceitando…

*

Foi na universidade que eu me dei conta de que continuava fazendo isso. Não necessariamente com jornais, agora. Mas com frases.

Se existia a chance de alguém dizer algo, narrar algo de certa forma, então existia a chance de isso ser verdade. Ou (e é um “ou” bem importante) de alguém ver aquilo como verdadeiro.

Porque o fato é que nós somos bichos narrativos. Pode agora ter toda essa conversa em torno do fato de o Oxford English Dictionary ter escolhido “post-truth” (pós-verdade) como a palavra de 2016. Mas no fundo nada mudou.

A verdade é uma coisa escorregadia, lisa, fugitiva. Mas a histórias, a explicações a gente de fato ainda se apega. Era esse afinal, o tema da coluna da semana passada, né?

As histórias, se têm verossimilhança, podem virar a nossa verdade.

*

Eu sempre desconfiei da ideia de que ler literatura aumenta a nossa capacidade de sentir o que os outros sentem. Até porque eu leio literatura que nem doido e continuo burríssimo em termos de sentimentos. E meu nome, cara leitora, é legião.

O que a literatura, no entanto, pode nos dar (e certamente me deu) é uma versão mais sofisticada do teste-Piquet.

Sentir como os outros é difícil. É duro mesmo.

Mas imaginar que história aquela pessoa conta a si própria é um exercício poderosíssimo. Aprender que as outras pessoas não são personagens da tua história, que o que te parece inexplicável (como é que ela pode não ver que….!) só é assim porque a história que aquela pessoa vive é outra.

Ela não descreve o mundo (e sua vida) como você faz. E imaginar qual história é essa que ela vê abre portas fascinantes.

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