Todo mundo conhece aquele adágio italiano que diz traduttore, traditore. Ou seja, o tradutor é um traidor. (Na verdade, ele só não é mais batido que a explicação etimológica de que tradução quer dizer transporte.)
Claro que os tradutores não endossam exatamente essa visão simploroide. Nem podiam. E claro, também, que a ideia ali normalmente é a de que os tradutores mudam o conteúdo dos textos.
Mas há outros casos, mais interessantes, em que o que os tradutores traem é mais o mercado, o capital, do que o texto.
Legendadores de séries pra torrent, por exemplo.
Pense nisso. Você baixar um arquivo com o último episódio de Game of Thrones antes de passar aqui é coisa que acontece por obra e graça lá de um pirata americano, e depois por toda a rede internacional de sites, peers e seeds que colabora pra isso acontecer. Mas pra você ter a legenda alguém teve que fazer um trabalho de tradução especial, cheio de especificidades, e a toque de caixa.
E esse povo tem logística, organização, hierarquia. Eles dividem o trabalho e depois escalonam as etapas: tradução, revisão, sincronia.
E no geral eles têm resultados MUITO bons. Bem decentes mesmo, com uma ou outra saída genial. Especialmente se você levar em conta que eles têm que lidar com língua oral surgida ontem, gírias novas, pronúncias emboladas…
Imagina legendar os diálogos dos traficantes em The Wire?
Mas não acaba nas legendas não. Uma vez, em 2008, eu fui banca de um trabalho aqui na UFPR que analisava as traduções piratas de Harry Potter feitas por um grupo específico de tradutores chamado Pacto.
É basicamente a mesma coisa. Movido pela pressa de poder dar a ler o original (e, nesse caso, também por certas discordâncias em relação às traduções “oficiais” dos romances no Brasil), esse pessoal se reúne, picota o livro, distribui cada trecho a um tradutor, e depois se organiza meio à la Sendero Luminoso, em células, pra ir uniformizando as escolhas e o estilo do texto em blocos cada vez maiores até chegar aos editores finais.
Eles, na época, tinham uma velocidade compreensivelmente assustadora, e uma qualidade final (dizia a aluna autora do trabalho, Beatriz Smaal), nada desprezível.
Posso imaginar que esse novo livro da saga tenha talvez até ressuscitado o Pacto. E imagino que a essas alturas eles tenham concorrência também.
É a velha lógica da dádiva, que o Lewis Hyde dizia que era a essência da arte, e que o Cristovão sempre sublinha que é a coisa mais linda desse mundo wiki: gente fazendo coisas de graça pra você. Mas aqui tem outra coisa, porque mais uma vez a edição da Rocco, quando sair, vai vender horrores também.
Como no caso da música pop, com a chegada do mp3, a gente se pergunta. A quem esses tradutores estão traindo de verdade?
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