Uma vez me disseram que, como eu tinha estudado música e tal eu estava como que condenado a não conseguir mais fruir a música. Sabe como?
A ideia de que quando você pensa sobre aquilo em termos minimamente informados, analíticos, você perde o simples prazer de se deixar levar. Patacoada, claro.
Primeiro porque, hoje, eu sou professor. E mesmo antes de ser professor eu era nerd bem antes de isso ser chique tipo “Big Bang Theory”. E tanto professores quanto nerds têm uma característica base (daí a grande sobreposição dos dois grupos, dãh): eles acham que é sempre melhor saber uma coisa. Saber mais sobre ela. Saber de onde ela veio, como ela funciona… Pra mim, em música, não há um único caso de uma peça que, depois de ter tocado, ou melhor ainda analisado, eu não ache MAIS poderosa do que antes.
Saber que o que te encanta na abertura da “Sonata 17” pra piano do velho Ludwig Van é o tempo que ele leva pra estabelecer a tonalidade da obra… saber que o mesmo rola na abertura do “Quinteto pra Clarinete” de Brahms… e saber que tanto a abertura quanto a estrutura toda desse quinteto prestam tributo ao de Mozart… Isso só amplifica o que você sente ao ouvir essas coisas.
Quer ver um treco simples?
Quando eu era piá eu era mega fã de Rod Stewart. Ainda curto. Na verdade, em duas ocasiões bem pontuais da minha vida, de que ninguém sabe nada, foi uma canção pop que me tirou de uma tristeza bem funda. E uma foi “Gasoline Alley”.
Aí (quem esteve lá nos 80 lembrará) tem essa música dele que chama “Baby Jane”. Sempre achei batuta. Dia desses ouvi na TV acho e me deu uma nostalgia. Aí fui tocar no piano (eu cresci tocando violão… mas, sim, colegas, aquilo que todo mundo fala é verdade mesmo: tocar no piano te faz entender as coisas bem melhor…) e descobri um troço joia.
A harmonia da música é bem simplinha. Mesmo. Os três primeiros versos da letra, por exemplo, usam três acordes. Dó Maior, Sol Maior, Lá Menor. Cada um durando oito tempos. Quadradinho. Dá pra tocar na segunda aula de violão.
Mas a graça vem da sobreposição da melodia. Bem rapidinho, o arroz com feijão é que a melodia use uma das notas dos acordes que estão soando (cada acorde daqueles é composto de três notas diferentes). Aí a coisa se harmoniza (tadá!) bem facinho.
Mas aqui não.
A nota da primeira sílaba de “Baby” é um lá. Que não está no acorde de Dó. A nota da primeira sílaba de “hanging “é um lá. Que não está no acorde de Sol.
Aí a nota em que ele canta knew é (surpresa!) um lá. Que, obviamente, está bem na cabeça do acorde de lá menor.
Isso aí, pra te encurtar muito a história e simplificar bem a terminologia, dá pra chamar de uma suspensão. Ele fica martelando aquela nota lá errada até de repente ela se encaixar. Cria uma tensão bem bacana que qualquer um, mesmo sem saber que é isso que está rolando, sente na música. (Aliás, se você tiver como, tente cantar a música usando duas notas Sol naquelas sílabas pra ver. A nota Sol, aliás, pertence aos acordes de Dó e de Sol. Funciona. Cabe: mata a música.)
E, pô, enquanto rola essa tensão, a letra diz, numa tradução fuleira: mozão, não me deixe aqui pendurado por um fio. Mole?
É chique. E a resolução vem quando ele diz que já conhece a mina das antiga… Ele meio que ilustra na tensão melódica a tensão da letra. Rod Stewart é um gênio da tradição musical ocidental!
Hmmm… não cheguemos a tanto. Mas o fato é que aqui ele está brincando com o mesmo
joguinho de Beethoven, de Brahms e, inclusive, da famosa abertura do “Tristão e Isolda”, de Wagner…Contam que uma vez, George Gershwin, mais conhecido por suas canções de jazz, estava com vergonha de tocar na frente de Alban Berg, um dos monstros da dita Escola de Viena. Dizem que, enquanto ele ensebava, Berg teria dito “Mr. Gershwin, musik ist musik”. Música é música.
Vai lá ouvir “Baby Jane” com os mesmos ouvidos inocentes agora.
Vai.
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