| Foto: Wikimedia Commons

Pelo barulho, a vizinha do lado está namorando de novo. Acho bom. Um dia ela precisou de ajuda porque tinha comprado um sofá gigante. Tocou minha campainha e fez aquela cara ambígua, algo entre a desculpa e a urgência. "Não passa na porta." Retirei os caixilhos para liberar espaço. Deixei o trombolho de pé e fiz uma força descomunal para arrastá-lo. Quando me via patético, suando em bicas e dando empurrões raivosos no sofá – por que daquele tamanho? – pensei no pior: entalar a coisa toda na porta e deixar a moça para fora de casa eternamente.

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O namoro explica o sofá exagerado, mas ainda não entendi o porquê de, naquele dia, ela manter o interior do seu apartamento em segredo. Impressionante: ameaçava avançar, ela se punha na frente. Nem água ofereceu. Esse mistério em potencial – "o que a vizinha esconde?" – só cresce.

Temos nossos segredos. O que me incomoda no meu apartamento, por exemplo, fora a planta meio esquisita da qual cuido sem saber qual é, são os jornais não lidos. Várias pilhas. Periódico sobre periódico, como se corpos ignóbeis em decomposição. O sentimento que me faz acreditar que um dia irei folheá-los tem a mesma essência daquele que aumenta o monte. Penso no dia em que abrirei a porta de casa, que range, como range – "uííííííííhhhhnnnn" – e irei desviar de todo aquele calhamaço de notícias pessimistas, pular os classificados e saltar com cuidado sobre o jornal de domingo, o mais desafiador. E ainda há as revistas, discretas, no cantinho, plastificadas; os recortes de pedaços de jornais com a minha assinatura – a pasta que faria para guardá-los, como se guardam figurinhas especiais, nunca existiu.

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Encarar a cena é o problema. Dependendo do ângulo, o monte ganha uma aparência disforme e embaralhada, já que diferentes papéis se misturam. A foto de uma página é interrompida pela manchete de outra. Viver entre jornais é uma cacofonia.

Tentativas não faltam. Já fiz planos para 1) ler sempre os jornais de ontem, arcando com o preço de transformar minha vida em um flashback contínuo; 2) acordar cedinho e ir atrás dos dois ou três calhamaços, e lê-los enquanto tomo um café esfumacento; 3) atentar só para o que me interessa e ignorar o remorso; 4) fazer uma maratona e ler tudo o que tenho de atrasado em um final de semana, até desmaiar; 5) jogar tudo fora, as revistas antigas, as novas, as matérias que poderiam encher uma pasta, e as que não li, mas gostei.

Já pensei em dar um nome a esse monstrengo de papel, tendo em vista que minha relação com a criatura estoica só se afina. Chamar de, sei lá, Cândido, Joaquim. Gutenberg. Gutenberg seria bom.

Toda noite, molho a planta desconhecida, que já se aprochega em botõezinhos de alguma coisa que em breve irei descobrir, e desvio o olhar das pilhas, que de ácaros pelo menos estão livres.

Digo tudo isso porque algum dia é preciso acabar com esse peso, que enviesa a prateleira, e parece se transmutar assustadoramente até empenar a alma daqueles que deixam as coisas não feitas pelo caminho. Mas hoje não. Hoje a vizinha está namorando, e durma-se com um barulho desses.

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