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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Perdão, mas as manchas no vidro da janela do meu quarto não são extensas nem opacas o bastante. Às 19 horas, então, vejo uma comoção comportada: é uma fila de ônibus. Como uma cobra gorda, ela se alonga. Contorce-se. Mas não muito, o tubo é grande. Os que esperam não se conhecem, não conversam entre si. Passinhos de tartaruga velha, todos entram no coletivo vermelho desbotado no teto – morar no segundo andar já é um privilégio. Todos, menos o cobrador. Ele aproveita o vazio para atravessar a rua e encontrar o outro sujeito de jaqueta cinza que trabalha no tubo em frente. Conversam sobre o movimento do dia. Se um reparou na moça de vestido azul. Ou se o outro ouviu algo engraçado. Quem sabe.Olho para o lado, pela mesma janela, e vejo a praça. Ou parte dela. Os postes duplos jorram luz talvez mais forte do que o necessário. Neste momento, são pouco mais de 20 horas, há sombras construídas por conta de uma pequena multidão que desvia do carrinho de pipocas, do banco de madeira "desbundado", das árvores tortas e guerreiras que chegam ao terceiro andar do prédio vizinho. Há quem corra em direção ao tubo, esse símbolo curitibano, balançando mochilas, perdendo papéis. Casais desfazem o laço carnal momentaneamente ao largarem as mãos e darem passagem a um menino que olha para o chão e não os vê. Mas todos têm algo em comum. Todos levam o peso do dia no rosto.

Menos os casais. Estes, ah. Se encostam na parede – há uma preferida, sem obstáculos às costas – a demonstrar afeto. Mesmo enquanto vem ônibus e vai ônibus. A sequência mais frequente, já registrei, é: beijo-abraço-corre-volta-beijo-corre-não-dá-tempo-volta-beijo.

Com as eleições, ai, ai, há um obstáculo a mais. Dia desses, nove senhoras desfilavam em linha pelo calçadão. Carregavam placas de madeira. Com suas respectivas letras, formavam o nome do candidato. Mas quase embaralharam a alcunha do homem quando uma árvore mal-educada surgiu no caminho. E há as bandeiras, que fazem pedestres desviarem como ninjas dos golpes de um pano vagabundo.

A esta altura, são pouco mais de 21 horas, o escritório que fica bem em frente à maior mancha da minha janela – já a limpei – está vazio. Com luzes acesas, porém. Mesas com aspecto asséptico descansam embaixo de papéis bem organizadinhos. Cadeiras azuis reluzem. No estacionamento, logo acima, as últimas buzinadas. Como buzinam aqui em frente.

Quando finda o dia e cessa o movimento, o pequeno mundo que vejo aqui de cima muda. Transubstancia-se. Pena que é tarde da noite. Senão passaria horas a fio a observar de perto o que pode ser chamado de uma pequena Ilha do Dr. Moreau. Seres extraordinários, urros desesperados, xingamentos esbaforidos, barulhos interessantíssimos seriam motivo de estudo, bem aqui no centro de Curitiba. Alguns claramente são motivados etilicamente, como aquele senhor de cabelos brancos e sebosos que gritava com o chão. Ele gritava com o chão. Logo ali, em frente ao tubo que horas mais tarde estaria entupido por uma multidão silenciosa.

E não adianta nota no jornal, sirene de polícia, reclamação de moradores em seus pijamas compridos. Aquilo é intrínseco à metrópole, é fruto de algo ignorado ou incompreensível. Pena que às vezes atrapalhe nosso sono.

Já são 8 horas e pela manhã há algo triunfal. Um senhor, quase sempre desfilando um pulôver cinza cheio de bolinhas, passeia com seu cachorro. Ele, o cachorrinho, não o senhor, não tem as pernas traseiras. Uma espécie de cadeira de rodas foi adaptado ao bicho, que mexe ligeiramente as patas dianteiras e arrasta o que resta das traseiras, paralisadas. Mas há toda uma proteção, ele não deve sentir nada.

Quando o sinal fecha, o dono e o bichano-maquininha esperam na calçada que fica entre as ruas. O cachorro olha para cima. O senhor olha para baixo. O sinal fica verde, e ambos rumam em direção à padaria 24 horas. Aí o barulho das rodinhas se confunde com o do saco de papelão, que leva pães quentinhos e ordena que mais um dia comece.

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