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Ela vem toda de branco, molhada e despenteada pela chuva de verão. Roda, roda, roda e nem liga para quem torce o pescoço e busca detalhes ao olhar mais por baixo, para algumas de suas partes mais escondidas.

Fez aniversário no último dia 2. Dia de Iemanjá. Comemorou indo ao médico, um sujeito magro e alto, de mãos grandes e pretas de graxa. Resolveu seus problemas com uma internação de dois dias que custou R$ 50. Não conseguia parar, a Janaína. Esse era o seu problema. E esse é o nome dela.

Janaína avança por entre as pessoas, interrompe conversas alheias ao se meter em espaços entre casais em namoricos sem dizer um a sequer. Mas não é que não seja simpática, a Janaína. É que entre brutamontes vermelhos e cinzas, que andam por aí todos os dias, ela, pacientemente, fica na dela. Até tenta se enturmar, mas não lhe dão espaço.

Dorme em um quartinho de empregada, ao lado de ferramentas e uma velha estante de madeira. Acorda às 8 horas, não come nada. Sai de ré e faz algum barulho. Então, com gosto, monto nela, que ganha a rua e o caminho da roça.

No trabalho, fica pendurada de pernas para baixo. Balança, treme, mas não reclama. Estática, permanece por cinco, seis horas. Até descer do gancho que a penetra, mas que a segura.

Seu balançar e sua beleza são tão atraentes que certo dia um amigo, abusando da amizade de anos, me pediu Janaína emprestada. Iria aparecer em um comercial de tevê, foi o que me contou. Motivo de orgulho. Um pouquinho de ciúme pelas cinco horas que passou não sei onde. Levou bagagem nas costas, mas também um troco. E no comercial, depois de verificada sua beleza, passou de coadjuvante a algo mais honroso. Eu iria contar a todos o sucesso da Janaína.

Gosta de sair à noite. Curtir as pedrinhas brilhantes do asfalto, o cheiro de mormaço depois da chuva e as outras e outros iguais a ela que vê amarrados por aí, em postes tristes e em placas de "proibido estacionar".

Oxalá eu nunca perca Janaína. Então a amarro forte, com uma corrente grossa que dá duas voltas em seu corpo branquinho e esguio. Ela não reclama. Na volta, tiro o ferro com delicadeza e subimos juntos a ladeira, devagarinho, por sobre a faixa amarela no canto da rua.

No caminho, quando não estou ouvindo música, conversamos. Ela diz que se sente ameaçada no dia a dia. Que não há um lugar específico e útil para que desempenhe tudo aquilo que é capaz. Que sente que seus direitos não são iguais, que é desmerecida e vista com maus olhos. Que atrapalha. Eu concordo, e digo que também queria que as coisas fossem diferentes, como há algumas décadas atrás, quando similares a ela enchiam as ruas. Mas há de mudar. Às vezes, quando meu corpo está sobre o dela, Janaína me pede encarecidamente para que não andemos na contramão ou para que olhe para os dois lados antes de atravessar alguma rua mais movimentada.

Chegamos em casa suados, cansados. A devolvo em seu quarto de dormir. O boa noite acontece quando encosto meu pé em seu pezinho. Ela vira de lado. Vou para minha cama já pensando nas pedaladas que darei em Janaína, minha bicicleta, na manhã seguinte.

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