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 | Osvalter Urbinati
| Foto: Osvalter Urbinati

Extra! Há dois colchões sob o bondinho da Rua XV. Um é azul. Desbotado e esgarçado. Vive vazio e espremido entre – como se chama? – as engrenagens de ferro do antigo trem e a graxa remanescente. O outro parece um tipo de capa de chuva gigante, daquelas amarelas e fosforescentes. Ali, todas as noites, alguém muito comprido se enrodilha em posição fetal. Nem as orelhas ficam para fora quando passa das 19 horas.

É assim faz mais de semana, quase duas. Curioso é que pela manhã, nestes dias quase frios, não há ninguém debaixo do bonde. Dormem papelões rasgados. É que dentro do vagão trabalham três funcionários da Fundação Cultural de Curitiba. Batem ponto das 9 às 18 horas de segunda a sexta-feira; das 8h30 às 14h30 aos sábados. Domingo, não. Domingo é cinza sagrado.

Por alguns dias, tentei descobrir quem dorme ali. Numa terça em que ventava muito, batia pernas na XV e ouvia a Voz do Brasil por gosto. Agachei. É estranho. No espaço entre o petit-pavé e o fundo do bonde uma criança não conseguiria ficar em pé. Muito escuro também. Quem dorme ali, pensei, tem um retrato inusitado da rua mais movimentada da cidade: a vida resumida a pernas e calcanhares, sapatênis e rasteirinhas, havaianas e patas de cachorro.

Cutuquei a carne envolta naquela lona amarela. Nada. O dedo indicador espetou de novo, um pouco mais forte. Ouvi um gemido doloroso e ao mesmo tempo ameaçador --argghhhhhaaannh. O outro colchãozinho permanecia no canto oposto, como que esquecido para sempre sem querer. Desisti. Acordar alguém sem motivo justificável – tsunami, terremoto, um título do Paraná Clube -- é babaquice, afinal.

Então persiste a curiosidade: quem em Curitiba tem o privilégio de dormir sob 2 mil e 200 livros? Obras para crianças, crônicas, literatura brasileira, gringa, poesia e etc. Imagine-se pegando no sono ao som de Siegrfriend Lenz: “Talvez as coisas que nos façam felizes necessitem ser guardadas em silêncio”. Ou de Guillermo Cabrera Infante: “O amor é como se te pusessem algo que te tiraram e nunca esteve ali.” Talvez Valter Hugo Mãe, providencial: “Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade.”

Durante o último março, 2.095 pessoas entraram no bonde. Foram 1.005 adultos (acima de 29 anos), 685 crianças (até 14) e 405 jovens (entre 14 e 29), me conta um dos funcionários do Bondinho da Leitura. Na última quarta-feira, o movimento foi “baixinho”: 50 pessoas subiram aqueles dois degraus.

A invisibilidade alheia é o nosso vício inerente. Já nos acostumamos a quem se refestela nas esquinas das Marechais e nas marquises vizinhas à Confeitaria das Famílias. Na Treze de Maio, então, tudo bem, beleza. Mas dormir sob um dos pontos turísticos da cidade que busca agora ser “humana” é uma ousadia inédita. Merece um post no Face da Prefs.

Numa manhã quase fria dessas aí, um sol bonito avermelhava o vagão solitário. Um casal que antes bebia chopes no Mignon se aproximou do bonde para uma foto. No escuro da sombra, os colchões se confundiam com o chão. Mas foram registrados, para ninguém ver.

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