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O Velho Garcez, como a gente chamava, era um velho pão-duro que só, numa chácara que dava as jaboticabas mais doces do mundo. Daquelas grandonas mas de casca fina, que estouram na boca, ploc, tão doces por dentro quanto negras por fora, pérola de pomar.

Porém o pomar do Velho Garcez era cercado de arames farpados, tão juntos e esticadinhos que pareciam cordas de viola, mas moleque é moleque, a gente inventava modos e maneiras de varar a cerca. Cavando passagem por baixo do último arame. Ou forçando passagem entre dois arames, com uma forquilha servindo de alavanca e suporte.

Porque o Velho Garcez cobrava ingresso para o jaboticabal, a pessoa pagava para ficar lá comendo quanto aguentasse. Cada jaboticabeira tinha uma escada para se alcançar os galhos altos, e famílias entravam ali fazendo festa, saíam arrotando redondos. O Velho Garcez sempre de olho, rondando, vendo se não quebravam galho, se não jogavam muitas jaboticabas no chão, tão avarento que ele mesmo só chupava as caídas.

A gente olhava lambendo os beiços, invejando os passarinhos que também comiam lá. Mas, quando começava a escurecer, a gente varava a cerca, descalços e só de calções, deixando as camisas lá na rua de terra, para não manchar, rastejando pelo chão coalhado de jaboticabas. Um subia numa jaboticabeira, outro noutra, comendo depressa antes que o velho gritasse de lá:

– Molecada infernada! Corre ou leva chumbo!

A gente continuava enchendo a boca, sabendo que eram cartuchos de sal, não de chumbo, o velho era louco por dinheiro mas não era louco de tudo. Quando atirava, o sal estralava nas folhas, como uma vassourada varrendo as árvores. A gente protegia os olhos, porque o corpo podia arder, enquanto a boca continuava comendo, até que o velho gritava que ia soltar os cachorros, aí a gente descia correndo, arranhando nos arames para varar a cerca de volta, docemente melecados, faltando só mais umas trezentas jaboticabas para a felicidade.

Até que um dia o Serginho fez aniversário e ganhou dinheiro. Comprou sorvete, doces, mas guardou também para o pomar do Velho Garcez. Ficamos vendo Serginho entrar, tirar os tênis para subir na primeira jaboticabeira, depois acenou de boca cheia, aí reparamos que ele não cuspia as sementes, engolia tudo.

Saiu duas horas depois, lerdo e pesado, a barriga quase rompendo os botões. Trouxe algumas jaboticabas nos bolsos, deu como se fossem esmolas, mandamos enfiar naquele lugar, ele riu.

No dia seguinte, não apareceu para jogar bola na rua. À tarde, batemos palmas na casa, a mãe dele avisou que tinha passado mal, de tanta jaboticaba. No outro dia, continuou em casa. No terceiro dia, uma ambulância parou na frente da casa, a molecada logo juntou em volta, vimos Serginho sair amparado na mãe, a cara amarelada, tão tonto que nem viu a gente.

Fomos correndo atrás da ambulância, naquele tempo quase ninguém tinha carro e aquilo era uma grande novidade. Cansamos logo, ficamos no poeirão vendo a ambulância sumir. Não vimos quando Serginho voltou, mas no dia seguinte ele apareceu na rua, cheio de prosa.

Contou que fez lavagem intestinal, tiveram de usar clister para desentupir o intestino dele, a gente sabia o que era clister? Era um tubo que enfiavam pela boca, para jogar água nas tripas. Bateu na barriga orgulhoso:

- O médico até falou que nunca viu tanto entupimento... E, quando desentupiu, foi caroço de jaboticaba pra todo lado! O médico até chamou estudantes de Medicina pra ver, então minha mãe diz que eu virei aula de Medicina!

Aí o Toninho, que era filho de farmacêutico, disse que clister na verdade era enfiado não pela boca mas por trás... e então fizemos tantas piadas e rimos tanto que Serginho voltou pra casa chutando poeira.

– Vai, professor de bosta! – um gritou e outro emendou:

– Jaboticú!

Rimos de endurecer a barriga, depois ficamos olhando as jaboticabeiras com os galhos já quase pelados, até que um falou suspirando:

– Pagando, não deve ter tanto gosto nem dar desgosto...

Concordamos, e ficamos aguardando o sol cair para varar a cerca, comer quantas fosse possível; sem os caroços, sem clister, ou conforme o Toninho:

Por mim, a Medicina vai continuar na mesma...

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