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Numa feira de livro um escritor novo me deu um romance, dizendo para eu ler já à noite e comentar no café da manhã! Tentei ler, e lhe disse que não fui além de um terço, pois só tratava de futilidades. Ele então citou Leminski – "A arte não tem qualquer utilidade", e deu as costas.

Eu poderia lhe dizer que Leminski escreveu aquilo num tempo de ditaduras, como contraponto a uma maré de músicas de protesto, poesia política, romances latinóides, teatro de resistência, cinema proselitista, crítica sociológica sufocante, super valorização das funções conscientizantes da arte. Mas, hoje, é papagueação repetir que "a arte não tem utilidade", como um dogma, para justificar obra sem graça, sem talento e sem visão.

Experimente dizer isso aos artesãos que vivem de dar forma artística a utensílios.

Vá dizer isso à menina Anne Frank, que, refugiando-se do nazismo num sótão, escreveu seu diário que continua a ser luz contra a intolerância, o racismo e o genocídio.

Vá dizer isso a Castro Alves, que conseguiu extrair tanta humanidade, emoção e beleza da escravidão.

Vá dizer isso a Gonçalves Dias, que, juntando saudade e nativismo, fez a "Canção do Exílio" um tal símbolo de brasilidade que repercute até no Hino Nacional.

Vá dizer isso aos escritores de livros juvenis e infantis, que iniciam e preparam leitores.

Vá dizer isso aos escritores de romances e contos adaptados para o cinema.

Vá dizer isso a Augusto do Anjos, que transformou a morte, essa feia bruxa, em fonte de complexa e personalíssima beleza, apreciada por gerações em série, com seu Eu se mantendo como nosso mais soberbo long seller de poesia, tão útil para uma visão destemida e alumbrada da vida.

Vá dizer que a arte é inútil a Machado de Assis, que deu a seu soneto "A Carolina" a função de comovidamente homenagear a companheira morta.

Vá dizer isso a Graciliano e Hemingway, que com sua linguagem clara e significativa mudaram a literatura.

Vá dizer isso a Da Vinci e Michelangelo, que tanto pintaram e esculpiram a pedidos de papas, para decorar esta ou aquela igreja.

Vá dizer isso a tantos milhares de escritores e poetas inéditos que têm na escrita uma gratuita terapia.

Vá dizer isso a Charles Mingus, que deu títulos políticos a vários de seus temas para jazz, sem por isso deixar de fazer música excelente.

Vá dizer a Leminski que a arte é inútil, ele que, escrevendo um romance tão aparentemente inútil como Catatau, cumpre a função de mostrar que a arte pode não ter qualquer utilidade, o que porém é também uma utilidade.

Se toda arte fosse inútil, cara, não haveria diversidade, a maior riqueza humana.

Arte pode ter motivações e funções politizantes ou catárticas, muitas vezes na mesma obra ou até na mesma página de romance ou partitura. Pode ter a função de te fazer rir ou chorar, pensar no mundo ou se alienar por algum tempo dos relógios do mundo. Pode ter tantas funções quantas quiser o criador. O que importa é ser arte, com talento.

Um dia, eu conversava com Leminski sobre os ex-comunistas, que na ditadura defendiam a luta armada para a ditadura do proletariado, e depois, na redemocratização, já defendiam até a compra de votos para ganhar eleições. Ele então disparou pelos bigodes:

– É fácil encher cabeças vazias.

E, na minha cabeça, cara, não tem espaço para livros vazios.

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