Dizem os gurus que a gente tem de alimentar e saber usar a criança, o jovem, o adulto e o velho que temos dentro. Pois outro dia fui do velho à criança em uma hora, passando também da dor para a alegria tão depressa que nem conto, ou melhor, conto.

CARREGANDO :)

Ouvi a moto do carteiro, fui abrir a caixa de correio, caiu uma carta, fui abaixar para pegar e pronto, me deu uma fisgada na coluna. Uma simples abaixada, uma dor, pensei não é nada, mas já comecei a mancar, entrei, a dor aumentando, sentei e logo não conseguia achar jeito de ficar sentado sem gemer de dor. Saí de casa, para o pronto-socorro, usando o andador de minha mãe, animal de seis patas, gemendo e até uivando de dor, encurvado feito velho.

Mas, como lembrei de colocar uma bolsa de água quente nas costas, no caminho a dor já foi aliviando, comecei a conversar com o taxista. Ele me contou que é frotista, quer ir trabalhar noutro país, juntar dinheiro para comprar carro próprio, e então perguntei se já viu reportagem sobre os brasileiros sem-teto no Japão.

Publicidade

Aqueles que vivem debaixo de viadutos?

– É, sabe por que? Eles dizem que acabaram assim porque lá a vida é muito cara, os empregos não pagagam tanto quanto prometeram, e ficaram doentes, todos têm alguma desculpa. É como em cadeia, todos se dizem inocentes. Mas conversei com um que trabalhou lá dois anos, enviando dinheiro todo mês para a família montar negócio, de modo que, quando voltou, já tinha trabalho bom aqui também. E me contou que quase todos esses sem-teto acabaram assim porque faltavam no emprego, ou porque foram pegos roubando ou coisas assim.

É, diz que lá a lei funciona, né?

Falei que não só as leis mas também os valores, que antigamente eram chamados de moral, é que sustentam a economia do chamado Primeiro Mundo. Respeito às leis e aos contratos, ou efetividade, e honestidade, qualidade de produtos e serviços, produtividade, pontualidade. Quanto "ade", ele falou.

– E se você quiser guardar dinheiro, vai precisar de serenidade. Controlar a ansiedade, a angústia, a solidão, que vão querer se compensar com bebida, jogos, diversões, que lá custam muito caro. Meu amigo nissei fazia caminhadas no tempo quente, no frio lia ou via filmes.

Publicidade

Chegamos ao hospital, ele me ajudou a sair do carro, deu aperto de mão, dizendo obrigado, a conversa do senhor vai me ajudar muito. Não tinha troco, arredondou para baixo o preço da corrida e ainda agradeceu: – Valeu, chefe!

Entrei capengando no hospital, mas me sentindo um adulto que ajudou um jovem, embora a dor logo me envelhecesse de novo, gemendo tanto que me botaram em cadeira de rodas na sala de espera. Um menino me apontou cochichando para a mãe, ela falou alguma coisa, ele amuou, fazendo bico e me olhando. Estava com a cara lambuzada de choro, decerto de dor também, e voltou a chorar. Perguntei o que ele viu em mim, ela respondeu que ele queria cadeira de rodas também, e então me levaram para o médico.

Acabei numa cama na sala de atendimento urgente, aí pedi à enfermeira para levar a cadeira ao menino. E estou ali, vendo pingar o analgésico do tubo para a veia, quando passa o menino na cadeira de rodas, empurrada pela mãe, ele sorrindo deslumbrado com seu novo brinquedo. Birrou para ser atendido na cadeira, não na cama, então a enfermeira me piscou, concordou, e ele mal percebeu quando lhe deram injeção, trocando sorrisos e caretas comigo, duas crianças.

Depois o menino se foi, fiquei ali vendo o pinga-pinga do analgésico, cochilei, dormi. Acordei, um velho estava na cama ao lado. Com voz fraquinha perguntou o que eu tinha.

Uma crise de coluna, e o senhor?

Publicidade

– Câncer no corpo todo, era no intestino mas espalhou – sorriu olhando em volta – Acho que desta vez não saio mais daqui.

Pensei no que falar, ele adivinhou, disse não fale nada:

– Já passei da fase de procurar consolo. Canceroso passa várias fases. No começo, se é um câncer que ainda não dói. não acredita. Quando acredita, se revolta: por que eu, Deus?! Depois, passa pela crença na cura, rezando com tanta fé que vira cegueira, eu cheguei a marcar data pra estar curado, em janeiro... Aí em fevereiro veio a fase da amargura, do rancor até contra os que te amam, porque vão continuar vivendo... Mas agora cheguei à última fase, a aceitação.

Sorriu fechando os olhos:

– Meu sonho agora é não morrer sem dizer que amo todos meus filhos, meus netos e todo mundo... Fique com Deus, rapaz – falou já sendo colocado em maca para ser internado, e se foi.

Publicidade

O analgésico não pingava mais, e eu não sentia mais a dor. Saí dali pensando no velho, e me sentindo muito grato e muito jovem.