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"Quando eu renascer" – escreveu ela – "antes de sair de minha mãe, vou passar a mão no meio das pernas, e, se não tiver nada lá, volto pra trás, não quero ser mulher de novo".

Assim era minha mãe, que mandou até na própria morte. Aos 86 anos, depois de várias internações hospitalares, na última ficando amarrada na cama como "paciente rebelde", me pediu:

– Quero morrer em casa, no meu quarto, na minha cama.

Quando entrou na fase terminal, sem qualquer doença, apenas a velhice tomando conta do corpo e da mente, avisei a equipe médica domiciliar: ela não iria mais para hospital. Então, quando eu sentava a seu lado na cama, mesmo sem mais falar ela me olhava agradecida.

Passou as últimas semanas alimentada com solução nutritiva injetada na boca, com quatro sabores, banana, chocolate, morango e baunilha, e enjoou de baunilha, entortava a boca e virava a cabeça até que percebemos, dispensamos a baunilha, ela sorriu.

Quando ainda tinha perfeita consciência, e ainda escondia bolachas nos bolsos para dar aos cachorros, ficou feliz quando contei que escrevia romance sobre nossa vida, mas avisei:

– Não é uma biografia sua, mãe, tem coisas que lembro e tem coisas que invento.

Ela pensou bastante antes de falar:

– Então lembra e inventa só coisa boa.

Nisso, mãe, não vou te obedecer. Conto também coisas más, porque verdadeiras, e invento coisas que, se não aconteceram, é como se tivessem acontecido, porque o livro foi escrito regido pelo teu espírito de pioneira desquitada num tempo em que isso era desgraça, empreendedora quando trabalho de mulher era só em casa, galinha brava na defesa dos filhos, líder comunitária tão abnegada quanto vaidosa.

Lembro de você, mãe, levando Anavaly e eu de bote pelo Rio Paraná, um dia inteiro naquele baita rio, a viagem mais fascinante de minha vida, para você uma afirmação de independência e coragem. O barqueiro começou a viagem para ganhar teu dinheiro, e terminou agradecendo tudo que tinha aprendido, aí você perguntou o que, ué, ele tinha aprendido.

– Não sei dizer direito, dona – ele respondeu encabulado – Só sei que aprendi.

Acho que ele aprendeu a não ter medo, mãe, coisa que você também me ensinou. Ou talvez tenha aprendido compaixão, como quando você abraçou e chorou junto com aquela pobre mulher de pescador que, numa barranca do rio, nos deu café adoçado com rapadura e misturado com farinha naquelas inesquecíveis xícaras de bordas lascadas.

Ou talvez aquele pescador tenha aprendido com você, mãe, que na vida a gente tem de obedecer ao coração. Fui jornalista, professor, publicitário, mas fui deixando tudo para perseguir o sonho de ser escritor, passando a viver de literatura e para a literatura, como você sempre falou:

– Quem não faz o que o coração manda, não merece a bênção de Deus.

Por isso, o nome do nosso romance, mãe, é Herança de Maria.

Escrevo isto pouco antes de Finados, e irei ao jazigo para, em vez de flores, deixar ali nosso livro, esperando que, quem pegar, leia, para ver como gente pode ter tantas virtudes quanto defeitos, como você, por isso tão humana.

E, depois de ter feito tantas orações por tanta gente em vida, rezadeira tão procurada que só parou quando proibi para você não se esgotar, espero que goste da oração que coloquei na tua lápide:

"Já rezei muito por tantos / já rezei tanto que enfim / não será muito portanto / pedir que rezem por mim".

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