Em Marabá, no Pará, o Rio Tocantins passava por um grande cais de pedra onde meninos nadavam entre os barcos castanheiros, agarrando nas grossas correntes das âncoras. Descalcei as sandálias, pulei na água, virei menino. A correnteza era tal que levava a gente por quilômetros, boiando, até onde o rio fazia curva e era fácil sair nadando, aí se alugavam bicicletas para voltar por uma trilha e cair no rio de novo. Perguntei o nome da brincadeira.
Pedala-turista.
Fim de tarde, entrei num barzinho, perguntei se tinha peixe fresco, a mulher mandou um menino buscar, ele foi ali no cais, falou com um homem, que jogou a linha na água, tirou um tucunaré de dois palmos que a mulher fritou explicando:
Peixe aqui, quem guarda pra nós é o rio.
Serra Pelada, 35 mil garimpeiros. Na farmácia, o farmacêutico atendia consultando, receitando e anotando em cadernos de fiado. Mas muitos homens pareciam iguais, só de calções e sandálias, da cabeça aos pés cobertos de lama negra, escorrida dos sacos de cascalho que levavam nas costas, subindo pelas escadas de pau as pedreiras da mina.
Como é que o senhor sabe quem é quem?
Pelo sotaque, voz, jeito de andar, de coçar.
O senhor é observador, devia ser repórter.
Quer trocar comigo? Só de doença venérea, trato uma dúzia por dia.
E como faz pra receber tanto fiado?
Um terço não recebo nunca, mas enfio no preço. De cada três, um sai do garimpo no prejuízo, mas todos sabem disso e concordam com o preço. Aqui a ambição anda de mão com a bondade.
Debaixo da uma castanheira amazônica, alguém me disse que o ouriço das castanhas, o côco onde elas se apinham, cai de quarenta metros: se pegar na cabeça, mata. Para abrir a dureza do ouriço, é preciso facão e habilidade. Mas o macaco, garantiu um caboclo, abre com uma pedra:
Bate no lugar certinho, o ouriço abre que nem a gente abre a mão, pronto.
E por que você não bate no mesmo ponto?
Mas o macaco não deixa ver, doutor, vai bater sempre lá longe! E eu já tentei tanto! Noutra encarnação quero nascer macaco só pra abrir ouriço com pedrada!
Oeste do Paraná, 1974. Com o fotógrafo Dorico da Silva, fazendo pioneiras reportagens sobre a soja que começava a cobrir os campos, passamos por um pasto queimado. Tocos da antiga floresta esbraseavam quando batia o vento, voltavam a ficar brancos de cinza quando o vento parava.
Numa cidadezinha logo adiante compramos dois espetos, carne e sal grosso. Voltamos à queimada, espetamos os pedaços de carne, salgamos e fincamos no chão, ao lado ali do primeiro toco em brasa. O chão estava coberto de cinza e fumaçava ainda quente. Deixamos os espetos lá, por conta do vento, e voltamos à cidadezinha, tomamos cerveja até o sol morrer. Aí voltamos para lá e, iluminados pelos faróis do carro, comemos só com os dentes, olhando ainda os últimos borrões do poente, um churrasco tão primitivo quanto inesquecível.
Praia de Fortaleza, lotada de barracas e ambulantes. Lá na ponta, isolada perto das rochas, uma barraquinha mambembe. Lá vou, um velho pescador me atende feliz, seu único freguês. Peço cerveja gelada, ele diz que não tem, mas pode mandar buscar. Vai com a caixa de isopor, volta, faz uma caipirinha deliciosa, assa peixe e camarões, passo o dia bebendo e comendo feito um rei.
Noitinha, chegam pescadores com sacas de peixes, samburás cheios. Peço a conta, ele soma num pedaço de papel, me espanto, é muito pouco. Ele sorri banguela:
É uma barraquinha de ponta de praia, se eu botar preço pra turista, perco a freguesia dos pescadores.
Pago em dobro, ele pergunta se acredito em Deus.
Porque amanhã eu precisava pagar uma conta sem falta, e só apareceu o senhor, pensei comigo: não vai dar. E agora o senhor me paga assim, vai dar certinho. O senhor foi mandado por Deus.
Sempre que me falta o sono, penso naquele pescador, me sinto um anjo, durmo feliz.
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