Dormimos com o janelão aberto ao lado da cama, e um repelente ligado na tomada. Quando levanto de madrugada, para atender Dona Bexiga, a luzinha vermelha do repelente é o minúsculo farol que me guia de volta para a cama na escuridão. Que seria de nós sem as pequenas coisas?

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Botões, por exemplo. Quando conheci Hélio Leites, em São Paulo, ele se apresentou como presidente da Associação Internacional dos Colecionadores de Botão, e admirei seus argumentos em favor dos botões, tão pequenamente importantes. (Hélio continua presidente da associação, até porque ela é uma fantasia preciosa: não tem corrupção nem nepotismo, não usa dinheiro público, não existe a não ser na cabeça dele, mas já ensinou a importância das pequenezas a tanta gente!)

Zíper enguiça, geralmente nas horas mais impróprias, mas botões não enguiçam, embora possam ser arrancados pela Senhora Raiva, o que lhes dá uma importância passional.

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Quando alguém quer se despir sensualmente, seus principais parceiros são os pequenos botões. E, quando alguém quer mostrar-se pronto para trabalhar, como fazem os políticos nas eleições, basta desabotoar e arregaçar as mangas da camisa. Além de tão multissimbólicos, botões são tão silenciosos, ganhando tanto nossa confiança, que quando queremos dizer que estamos falando sozinhos, falamos com os botões...

E as agulhas então, existirá algo mais finamente simples e insubstituível? Cada agulha parece um ponto de admiração para si mesma, com o pingo vazado no próprio pé.

Dentre todos os utensílios de casa, a minha preferida é a colherinha de café, de boca reta, portanto mexe bem o açúcar ou o mel no fundo da xícara. Todo dia temos um encontro matinal, e posso estar triste ou cansado mas ela está sempre brilhante, sempre dando a lição de que o mundo é o que gente reflete.

Tenho também afeto especial por um rolo de barbante branco e grosso, de algodão, que década atrás eu usava fartamente porque me parecia futuramente interminável, e hoje uso com parcimônia porque vai chegando ao fim... Se voltassem a se reunir todas as coisas que embrulhei, as plantas que estaqueei, os pacotes que fechei e as carnes que amarrei com barbantes de meu velho rolo, ah, seria um imenso monumento afetivo.

Minha irmã me deu há décadas um estilete japonês, de cabo curvo de madeira, onde a lâmina se embute. Já tanto me serviu, diligente e preciso, que dei-lhe o nome de Samurai San.

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No escritório, mantenho ao alcance da vista uma espadinha de lata, que ganhei menino, minha mãe guardou e redescobri na meia idade, enferrujada e amassada. Não me serve de nada, apenas lembra que fui menino e, com ela, batalhei contra piratas, venci batalhas, enfrentei espadachins e, portanto, posso continuar criando e vencendo, ao menos o tédio, pela vida afora.

Tenho – ou melhor, convivo com – duas canequinhas de prata, que ganhei de casal gay, donos de restaurante em São Paulo, numa noite em que choveu muito e o restaurante ficou vazio. Fui então o único freguês porque morava ali pertinho e cheguei antes da chuva, aí ficamos bebendo vinho e conversando, e rimos, e cantamos, e declamamos poemas, irmanando as almas, eles que pensavam que eu era um machistão, eu que pensava serem uns frescos que não gostariam dos mesmos poetas que eu.

Quando abro um vinho e deixo que fique um tempinho respirando, cubro a boca da garrafa com uma das canequinhas, a me lembrar que a cabeça que julga sem conhecer é cabeça de alfinete, e boca existe para que a gente escute o que os outros tem a dizer.

Das grandes coisas gosto de me desfazer, mas as pequenas coisas fariam grande falta.

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