Passo pela via crucis civil: primeiro, no banco, en­­frentar fila nos caixas automáticos, para evitar a fila maior nos caixas. Depois, no cartório, reconhecer firma de documentos para órgão público, embora o Código Civil dispense isso. O contador explica porque os contadores aceitam essas exigências descabidas:

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– É que a gente lida todo dia com os órgãos públicos, não podemos brigar com eles.

Então resta aos cidadãos brigar, mas como? Cidadania não tem sindicato e votamos em políticos que fazem leis e depois não fiscalizam. Mas podia ser pior, né? Podíamos não ter imprensa livre.

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Telejornal mostrou repórteres embarcando armados em aeroporto para mostrar que os detetores de metais estavam enguiçados. Só aí os detetores foram consertados.

Seria ótimo se fosse só isso num único aeroporto. Mas acontece o mesmo com rodovias, hospitais, escolas... Sem a imprensa, decerto estaríamos cercados de sucata pública.

O deputado bêbado matador só será julgado porque a família contou com a imprensa (e, mesmo assim, a perícia está sob suspeição).

Não é à toa que o senador Sarney culpa a imprensa pela crise no Senado: sem a imprensa, os atos secretos continuariam secretos, os apaniguados continuariam ganhando sem trabalhar, os diretores continuariam dirigindo redes de corrupção, e a Casa (da Mãe Joana) continuaria a campeã dos cabidões públicos de empregos.

Lembro da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, que visitei depois da queda do Muro de Berlim. A imensa sede da Stasi estava vazia, virando mocó, e os alemães lembravam do dia em que o novo governo chamou todos os policiais para trabalhar, o prédio então ficando pequeno para tantos. Depois, 17 mil seriam aproveitados nos serviços públicos, enquanto outros milhares, que ganhavam "por fora", ficaram vociferando sem emprego. Enquanto isso, com a imprensa liberada, os jornais cresciam e contratavam gente...

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Em Cuba, barcos com turistas param para os guias mergulharem catando lagostas em atóis que, como parques ecológicos, deveriam ser intocáveis. Perguntei se não temiam punição, me garantiam sorrindo:

Não tem ninguém vendo.

Com imprensa livre, qualquer turista poderia fotografar com celular e denunciar, mas, como a imprensa em Cuba só serve ao governo, os atóis continuam a ser saqueados em nome da "revolução socialista". Se a denúncia sair em jornal de país livre, o governo cubano dirá que é "difamação capitalista" e continuará fechando os olhos como o povo cubano fecha a boca quando perguntado sobre o governo...

Em 1968 ou 69, repórter iniciante na delegacia de polícia, num dia sem notícias, perguntei ao delegado se não havia mesmo nada de novo. Ele falou que, felizmente, não:

– Só tem denúncias de roubos de calças jeans em varais, coisa de molecada. Até na minha casa roubaram.

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No dia seguinte, estava a notícia no jornal: "Ladrões roubam calças até do delegado", com declarações que consegui de uma lavadeira e de uma dona de casa, para finalizar com a declaração do delegado...

Aí o fotógrafo me disse que o delegado ia me esganar se eu fosse à delegacia. Fui. Ele me recebeu muito bravo, dizendo que tinha virado gozação dos colegas, mas não podia fazer nada, era verdade. Seria mentira, fa­­lou, se eu tivesse escrito "Ladrões roubam até as calças do delegado". O "até" antes ou depois das calças fazia muita diferença, como faz muita diferença ter liberdade de imprensa