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Aprovado no vestibular, em março de 68 comecei a estudar na então Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras, que funcionava à noite no prédio do grupo escolar pioneiro de Londrina, o Hugo Simas, num quarteirão central.

Logo me enfiei no diretório acadêmico, ponto de encontro dos politizados e também logo resolvi pixar o pátio. Na noite da pixação, entusiasmados, Carlos e eu fomos pixando também as paredes dos corredores, e estávamos concentrados nisso quando ouvimos alguém perguntar ei, que isso?

Era um filho de Seo Osvaldo, o zelador que morava ali num porão. Corremos cada um para um lado, pulando o muro alto, e quase caí na calçada em cima de um guarda-noturno. Corri, ele apitou mandando parar senão atiraria. Pulei o muro de volta, com uma agilidade de que sempre me admiraria ao olhar aquele muro de dois metros de altura. Atravessei o quarteirão, pulei de novo o muro no outro lado e me afastei andando calmamente, ouvindo uma sinfonia de apitos convergindo para lá.

Carlos contaria que escapou se enfiando no fundo de uma casa, de onde pulou o muro para uma casa de madeira vizinha, quando policiais militares chegaram para vasculhar os quintais com os guardas-noturnos. Carlos bateu na porta do fundo da casa, um homem de cuecas atendeu, ele contou porque estava ali, o homem tranquilamente disse que podia passar a noite na cozinha, ele entrou, sentou numa cadeira e dormiu debruçado na mesa. Amanhecendo, saiu sem agradecer porque o homem dormia. Colegas politizados interpretariam a atitude acolhedora do tranquilo cidadão de cuecas como claro sinal de "apoio das camadas mais progressistas da população ao processo revolucionário"...

Na tarde seguinte fui ao diretório acadêmico, que estava vazio, então sentei num banco do pátio com um livro, entre uma página e outra contemplando nossas pixações pelas paredes. Aí vejo o diretor da faculdade, professor Iran Martins Sanches, com um sujeito me apontando.

À noite, o diretor me chamou a seu gabinete, que funcionava num porão.

– O senhor veja, tudo aqui é provisório, é precário, nossa faculdade funciona à noite no prédio de um grupo escolar. Mas fazemos questão de manter tudo limpo e arrumado. Conseguimos pintar o prédio, até como uma forma de agradecer ao grupo escolar, e o dinheiro foi conseguido com muita dificuldade. Mas, ontem à noite, as paredes foram pixadas. E um guarda-noturno da vizinhança garante que o senhor era um dos pixadores.

Fiquei esperando o castigo.

– Mas acredito que o senhor, que parece ser uma pessoa inteligente, só tinha boas intenções. Ninguém se arrisca assim à toa, não é? Mas, se o senhor tem o que dizer, por que não usa papel, que é para isso?

Falei que o diretório acadêmico não tinha dinheiro para fazer um jornal, ele perguntou se não podia ser um jornal mimeografado, que Seo Osvaldo, o zelador, podia mimeografar.

– E eu adianto ao senhor o papel, mas para ser pago antes da edição seguinte. De quantas folhas vai precisar?

Eu, que vivia falando de repressão e censura, fiquei sem ter o que dizer. Mas peguei logo os papéis, para fazer um jornalzinho em papel ofício, O Coruja (a coruja era símbolo da Filosofia), com colaborações várias mas sempre direcionado para a luta contra a ditadura e simpatia pelas lutas esquerdistas. Distribuímos pelas salas, cobrando o preço de um refrigerante de quem quisesse pagar, e verificando que alguns simpatizantes davam bem mais, como forma de mostrar apoio sem se arriscar. Eu preferia os direitistas que dircordavam do jornal e vinham discutir comigo. E depois de esgotar a edição eu ia prestar contas ao professor Iran.

Ele me recebia na sua sala, comentava o jornal, discordando de várias matérias, sempre com muito respeito e ponderação, e sempre encerrando com a mesma frase:

– Democracia é isso, discordância e tolerância para a convivência.

Na primeira vez, talvez até como provocação, levei o dinheiro em maços de notas miúdas, que ele pacientemente contou, conferiu, fez questão de me dar recibo.

Na segunda vez, levei o dinheiro já em notas graúdas, ele agradeceu, já tinha pronto o recibo. Mas voltou a criticar o conteúdo do jornalzinho:

– É quase todo contra isto ou contra aquilo, e as coisas na vida não funcionam assim. Na vida, tudo se relaciona! Nós, por exemplo, em vez de conflitar, estamos nos relacionando, produzindo! Conflitando, que é que estaríamos produzindo?

Eu pensava em muitas revolucionárias respostas, mas não conseguia formular nenhuma. A ideologia não conseguia responder aquela lógica simples. E, quando lhe levei o dinheiro da última edição do Coruja, já perto do final do ano, ele sorriu:

– Parabéns. Continuo discordando do conteúdo editorial, mas devemos reconhecer que o senhor foi persistente, e cumpriu com o combinado. Além disso, pintamos nossas paredes de novo e elas continuam limpas, obrigado. Mas o mais importante é que os senhores puderam escrever o que quiseram, não é? Do jeito certo, com respeito. Conhece o ditado? Quoci fa tutte! Assim se faz tudo!

Só duas décadas depois de militar no movimento estudantil e nas campanhas pela redemocratização, Anistia, Constituinte, Diretas, e depois de ver tantos esquerdistas e direitistas virarem vigaristas, fui me dar conta de que um professor tranquilo, de crenças firmes, que evitava falar de política, foi quem me deu a lição de democracia que guardei e agora semeio.

Do recém publidado Mestres da Paixão, livro de minhas memórias escolares pela Editora Moderna.

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