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Hoje que posso, não vejo mais graça mas, quando era jovem e não tinha recursos, amava viajar, e um primo que trabalhava em uma funerária me conseguiu passe para conhecer uma ilha.

Quando o barqueiro pegou o passe, já perguntou quem tinha morrido, falei que só a família queria divulgar. Ele falou que eu nem precisava contar:

– Tanta frescura só pode ser coisa dos Carneiro. Mas quem?

Fiquei quieto, ele insistiu: quem? Falei que não podia dizer, por sigilo profissional. A cara dele se iluminou:

– Sigilo profissional! Então foi aquele velho advogado rabugento, hem! Eu sempre falei: um dia o senhor vai pagar por defender tantos criminosos, doutor Raul Carneiro!

Amanhecia mas a ilha ainda era uma mancha negra à frente, que me distraí olhando, e de repente vejo que ele já contava a novidade a outros. Fui até ele:

– Senhor, o doutor Raul não morreu.

Ele ficou me olhando de boca aberta, até que sorriu:

– Claro, claro... Sigilo não é coisa só de advogado, mas de médico também, certo? Coitado... – e foi pela balsa contando que, na verdade, era o Doutor Zezito quem tinha morrido, e só podia ser daquela doença que ele queria esconder de todo mundo.

Deixei que espalhasse a morte do Doutor Zezito e, quando voltou para perto de mim, falei que ele podia até ser preso por noticiar a morte do único médico da ilha. Ele me olhou com os olhos estreitando, até dizer que diabo, então quem é que tinha morrido dos Carneiro?

Falei que eu não tinha falado que alguém dos Carneiro tinha morrido, e ele falou é, você não falou mesmo.

– Mas que outra família teria tanta frescura? Arrisca não ter ninguém no velório!

Falei que eu também não tinha falado que alguém dos Carneiro não tinha morrido, e ele voltou a falar é, você não falou mesmo.

– Aliás, você não fala nada que interesse. Devia ser proibido agente funerário que não fala.

A barca estava já perto da ilha, resolvi brincar, falei que na vida tem gente de todo tipo e jeito, iguais mesmo só camarões. Ele concordou balançando a cabeça, até espetar um dedo diante do meu nariz, os olhos brilhando:

– A velha Maroca! Você me enganou com os Carneiro, mas agora está claro que só pode ser aquela velha vaca, que vive ruminando ditados e provérbios, "tem gente de todo tipo e jeito", "iguais só camarões", ah, te peguei! E já vai tarde aquela velha!

Foi pela barca, falando alto que, na verdade, quem tinha morrido era aquela vaca da velha Maroca! Alguém falou que ele devia ter mais respeito. Ele veio de cabeça baixa me cochichar:

– Viu onde me meteu com esse tal sigilo?

A barca atracou, fiquei por último, para perguntar:

– Sabia que antigamente a família botava uma moeda nas mãos do morto?

Ele balançou a cabeça, não sabia.

– Era para ele pagar a travessia pela Barca de Caronte, a caminho do céu ou do inferno, não lembro mais. Eu preferia ter pago esta travessia.

Ele ficou me olhando sério, até um sorrisinho ir se abrindo. E eu já estava no embarcadouro quando ele gritou:

– "Antigamente", é? Coisa histórica, né? Então foi aquele professorzinho de História dos Carneiro, certo?

E aquela travessia acabou sendo o que lembro daquela ilha.

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