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Vem aí a Copa e lembro de Garrincha. Um filho sueco dele andou por aqui, a nos lembrar daquele meninão que fugia das concentrações para farrear e fazer filhos. Um dia, voltou de madrugada, o técnico do Botafogo deu uma baita bronca, então ele deu uma dormidinha de manhã, fugiu de novo para almoçar feijoada com as devidas bebidas. À tarde, o técnico botou o craque no banco, mas a torcida tanto gritou que ele botou Garrincha no segundo tempo, e brincando o moleque fez dois gols.

Irresponsável e civilmente incorreto, Garrincha foi um fenômeno esportivo e até estatístico, por ter nove filhas com sua primeira mulher. Mas o menino de Pau Grande foi notável, antes de tudo, por representar, mais que nenhum craque, as carências e a molequice do povo brasileiro.

Carências? Sim, nosso mais conhecido escultor tem a alcunha de Aleijadinho, e chegou a esculpir com a ferramenta amarrada à mão já destruída pela lepra. Nosso maior inventor, Santos Dumont, se matou, por carência de equilíbrio, se se pode julgar assim um homem com uma doença incurável. Mas também o desequilíbrio emocional vitimou nosso maior escritor, Euclides da Cunha, por não suportar ser traído pela mulher, indo matar o amante dela e por ele sendo morto. Nosso maior poeta, Augusto dos Anjos, passou a vida em penúria, como Cruz e Sousa e tantos outros. Carências marcam nossos gênios.

Garrincha chegou a ganhar bom dinheiro mas, como o brasileiro ainda típico, não sabia poupar nem investir. Quase no final da vida, miserávelmente alcóolatra, foi visitado pelo velho amigo Newton Santos. (Newton era o zagueiro-deus do Botafogo quando Garrincha chegou para teste e, desconhecendo ou ignorando a fama do zagueirão, meteu-lhe uma bola pelo meio das pernas...) Mas agora era Garrincha que ia mal das pernas, cambaleando, o olhar perdido, como desfilaria numa escola de samba que o homenageou.

Então Newton viu umas notas saindo debaixo do colchão, e acharia pela casa mais dinheiro de muitos países, enrolados em maços, escondidos aqui e ali. Garrincha pensava que dinheiro estrangeiro só podia ser gasto nos seus países...

Era tão ingênuo que se deixava dopar, com injeções analgésicas, para jogar pelo Botafogo com o joelho estourado, porque era a grande atração de bilheteria nas excursões caça-níqueis.

Mas era um gigante intuitivo no campo. Quando Pelé foi quebrado pelos portugueses numa Copa, o jovem Amarildo entrou em seu lugar. Em entrevistas Amarildo contaria que, no vestiário, Garrincha notou seu nervosismo e tranquilizou:

– Quando eu for pra linha de fundo, guri, você fica na entrada da pequena área. Quando eu for centrar, você finge que vai pular, pros zangueiros pularem antes, aí dá um passo pra trás e pula livre, que a bola já está indo pra tua cabeça, é só cabecear.

Amarildo faria dois gols examente conforme as instruções do moleque. O segredo da precisão dos passes de Garrincha estava naquilo que alguns craques costumam detestar: treinamento. Ele gostava de treinar, o que explicava seu físico atlético mesmo com as pernas tortas. E gostava de treinar por ser no treino que podia encontrar todos os colegas de time, os amigos, como dizia desde o tempo em que jogava futebol de rua com bola de meia.

O segredo de sua precisão se devia, mais ainda, a uma obsessão moleca: fazer gols olímpicos. Na marca do escanteio, o ângulo com o gol é zero, e é preciso chutar a bola com efeito para curvar de repente e entrar no gol enganando o goleiro, uma façanha de perícia. Então Garrincha pagava a meninos para ficarem, depois dos treinos, catando bolas para ele treinar gol olímpico, dezenas e dezenas de vezes. Tem sete gols olímpicos registrados em campeonatos oficiais, mais os que fez em jogos amistosos. Dois fez num mesmo jogo, aproveitando o vento.

Foi o craque que mais sofreu faltas, e só revidou uma vez, dando um chute na bunda do zagueiro que já se afastava. Foi expulso pela primeira e única vez. Estas coisas pesquisei há duas décadas, para escrever sua biografia, mas Ruy Castro escreveu antes.

Ficou na memória que aquele moleque foi o inventor da bola chutada para fora, para que um adversário caído possa ser atendido pelo médico. Um gesto tão humano e tão simples, mas para isso o futebol precisou de meio século e de um moleque que jogava contra os maiores times do mundo como quem jogava na rua de terra em Pau Grande – sem medo algum, com alegria, para se divertir e divertir o povo.

Ronaldo quer ser o maior goleador de todas as copas. O Brasil é o grande favorito. Mas desconfio que, para chegar lá, é preciso não esquecer a lição do moleque Garrincha: jogar como quem joga uma pelada, pra se divertir e fazer o povo rir. Aí não tem quem possa com os brasileiros.

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