Minha mãe deixou apartamento no centro da cidade e veio morar comigo aqui na chácara, com 85 anos, depois de dois derrames sem sequelas mas com uma placa de platina de 30 centímetros enxertada na coxa: quebrou o fêmur andando no apartamento às escuras. Não lembra o que estava procurando naquela noite:
E achei só um monte de problemas... Mas, quando ficar boa da perna, vou voltar a ser a Maria de sempre!
Não desiste de sonhar: diz que vai andar pela cidade, visitar as lojas, rever amigas, levar para passear o Chuvisco, seu cachorrinho maltês branco e metido que só. Ele chegou aqui na chácara, bichinho inocente de apartamento, e já quis trepar na Maga, cachorrona várias vezes maior que ele, levou uma surra de ficar manco por alguns dias e agora não sai mais da casa, quietinho que nem passarinho caído do ninho. Sua dona também, apesar de sonhar com andanças e fazenças, anda penosamente com o andador, dando passos de centímetros, uma pequena eternidade da cama até o sofá da sala. Mas brinca:
Se for muito depressa, não dá tempo de olhar a paisagem.
Olha pela janela, pergunta se aquela árvore estava ali ontem. Claro que estava, digo, pois como eu ia botar ali um baita flamboiã de um dia para o outro? Ela bate na testa a mão flácida de dedos entortados pela artrite:
Ah, é, árvore tem raiz, né? Mas e esse passarinho, será o mesmo de ontem?
Na janela pergunto ao passarinho se é o mesmo de ontem, ele canta, ela ri. Boto-lhe na mão os três comprimidos da manhã, ela enfia todos na boca, pergunto se não é melhor engolir um de cada vez. Ela passa a mão na barriga:
Aqui tudo vai misturar mesmo... Cadê o jornal?
Orgulha-se de ler sem óculos. Antes dos derrames, interessava-se por política, agora prefere comentar secas e tempestades.
Política não chove nem molha.
Usa fraldas, diz que é brincadeira de Deus.
Ele me falou num sonho: seus netos estão demorando muito pra te dar bisnetos, Maria, então vou fazer você usar fralda!
No começo, fechava os olhos enquanto a cuidadora lhe trocava a fralda, mas agora até conversa.
Virei uma velha sem vergonha. Mas você, meu filho, não vou deixar que me troque fralda, senão você vai ver se onde veio e pode se assustar!...
Ri, jogando para trás os cabelos brancos. Corre os olhos pela sala, acha Chuvisco.
Coitadinho, tá doente de amor. Dá pra ele aquela carninha gostosa que você me deu cedo!
Mãe, aquilo é lombo defumado, custa caro, não é comida pra cachorro.
Mas ele não é um cachorro, ele é o Chuvisco!
Me rendo a sua louca lógica, pico lombo defumado com pão e leite, Chuvisco come, ela sorri feliz.
Quando eu for pro Céu, quero que o Céu tenho um milhão de Chuviscos!
Não é muito cachorro, mãe? A senhora sempre falou que tudo que é demais faz mal...
Ela pensa, olhando o cachorrinho.
É verdade, ia ser muito Chuvisco. Iam fazer muito cocô, o Céu ia ficar fedendo. Ia até chover xixi, né?
Resolvidos os problemas do Céu, ela vê tevê. Pergunto se quer que aumente o som (ficou meio surda por tomar quinino contra tifo lá na década de 40) mas ela diz que não:
Pode até tirar o som, eu só vejo as figuras.
Mas assim não fica sem graça?
Não, assim é que fica engraçado.
Pergunto que vestidos devo trazer do apartamento, pois ela tem armários cheios de roupas que vamos doar.
Traga só as camisolas, e só um vestido pra eu ir no baile.
Que baile, mãe?
O baile de São Pedro. A gente entra num caixão, vai até o baile, São Pedro abre a porta e a gente dança com os anjos. No baile minha perna vai ficar boa de novo, não vai?
Digo que não sei, mas sei que vou sentir saudade.
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