Vejo chefs descendo a lâmina alucinadamente sobre cenouras, talos de salsão e de alho-poró despreocupados, como se o movimento não dependesse de suas próprias mãos.
Olhando para o horizonte, eles dizem: “Pique grosseiramente” e pulam na tábua cubos perfeitos de 2 centímetros.
Como um samurai, os peixeiros abrem barrigas e arrancam barbatanas com um golpe suave, sem solavancos.
Açougueiros empunham cutelos e quebram ossos sem alterar a respiração. Enquanto isso, peno para tirar o pedúnculo de um tomate maduro com uma faca de ofício sem estraçalhá-lo demais.
Me pergunto se ainda há medo em mãos com gestos tão precisos (e algumas cicatrizes).
Sentiriam menos dor que nós, os desajeitados, quando acertam a ponta da faca em si mesmos?
Há futuro para os lentos na arte de manejar uma arma branca se os fins são culinários?
Do mise en place à manobra para comer uma folha de alface sem cortá-la, são muitas questões que me espetam quando cozinho.
Talvez porque a cozinha seja um ambiente visceral e rústico, mas também frágil.
Visceral porque se lida a todo momento com a possibilidade de sangue (do cozinheiro, do animal ou, em alguns casos, do cliente que vai pagar uma conta alta) e frágil porque errar é regra para iniciantes: a mira, o ponto, o tempo.
Tenho exercitado há um par de anos manejar uma faca de chef – aquelas com lâminas entre 15 e 25 centímetros e que são bem (mas bem) mais pesadas que uma faca de serra com cabo de plástico.
Desde então o lado direito da unha do meu indicador esquerdo apresenta um ângulo agudo e poucas, mas mais que cinco vezes, estive de band-aid.
Da última vez que acertei em cheio meu próprio dedo a lasca de pele saiu tão fina que até meu sistema circulatório demorou para agir.
Desconsiderando a dor que me atingiu quando o sangue vazou em gotas grossas, olhei orgulhosa aquele naco translúcido que ficou pendurado em mim: digno de um carpaccio.