Se não tem coentro, vai salsinha; se faltou leite, mete água; se ficou sem amido, arrisque com fécula. Afinal, a cozinha é o berço do improviso. Foi lá que a necessidade deu à luz essa ligeireza pra resolver as coisas que só os calejados têm e foi nela que muito paladar se adaptou a gostar das coisas como elas não deveriam ser, mas que, graças aos céus, acabaram deliciosamente sendo.
Não é que o palato se acostume com o ruim, é que ele pode, vez ou outra, acabar sendo surpreendido positivamente pela carência de condições ideais. Ó pá, imagine a cara do primeiro gajo a provar o quindim com coco enquanto se chorava a falta de amêndoas por aqui!
Se não tem luva, vamos dobrando um pano seco assim-assim. Se não tem espátula, usa a faquinha de serra. Se não tem xícara, mede com a caneca.
Nem todo berço é esplêndido: cozinhas que já nascem muito bem equipadas perigam virar cenário de si mesmas.
Há tantas possibilidades dentro de uma só panela, mas nos acostumamos mal: me veja esta lista inteira de enxoval, depois a gente vê se vai usar tanta coisa.
É máquina de lavar louça, de fazer pão, robô que substitui 24 eletrodomésticos e por aí vamos entupindo nossas bancadas com equipamentos.
Mas precisaria a cozinha doméstica de muito mais que um liquidificador e uma panela de pressão?
Talvez sim, mas antes, tentemos lograr o máximo com pouco, pelo menos uma vez, para sentir como é.
Preparar uma refeição inteira com a tal faquinha de serra. Moer o pesto à mão. Bater clara em neve no muque.
É bom começar mambembe pra aprender a se virar com o que vier, seja um fogareiro no meio do Atacama ou uma cozinha digna de showroom.
Na falta de café, vai chá preto. A receita pedia ovos, mas só tinha linhaça. Fermento no fim? Tasca bicarbonato de sódio.
Arrisca-se muito em substituições às cegas. Pode ser que arruine o jantar. Pode ser que se descubra o próximo prato preferido.
Se o cozinheiro for de aventura, pode ser que crie uma série de anotações minuciosas sobre as variáveis daquele preparo – e ganhamos todos.
Mas respiremos aliviados: qualquer receita guarda em si o potencial para desandar.
Dizem que é a mão da pessoa. A velocidade e os movimentos com que se bate uma massa de bolo. Se usou um fuê, uma colher de pau, um garfo simples. O ponto da massa, a temperatura e o tempo no forno.
Coisa que só quem abatumou, queimou e encruou seguidas vezes sabe prever e consertar. E, quando aquele pão finalmente cresce e assa perfeitamente, sentir que cozinhar parece ser uma maneira de nascer de novo.
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