Kafka aterrissou no Guadalupe. Tenho medo de entrar em repartições públicas e agora percebo que a culpa é desse tcheco. Depois de ler O Processo, tenho pânico de qualquer protocolozinho, guichê, senha, “aguarde ser chamado”. Mas como às vezes é necessário, lá estava eu, ingênua, achando que seria rápido e fácil.
Doce ilusão. As mesas de atendimento se repetem como duplicatas, variações do mesmo tema, intermináveis. Na área de espera você espreme o olhar e tenta adivinhar qual daquelas almas o conduzirá pelos descaminhos do sistema.
As roupas coloridas me chocam, eu teria imaginado um preto e branco mais afeito ao franzino Franz.
O terror do inesperado fica à espreita. Na boca do estômago as hipóteses se descortinam como num rolo de caça-níqueis. O valor a pagar, o valor a pagar. A espera é diretamente proporcional ao montante, o que só amplia a angústia.
Das inúmeras portas laterais saem pessoas apressadas de terno ou saia, e imagino onde estiveram. Numa daquelas passagens em que K. chega a residências burocráticas em que os habitantes fazem parte de um esquema secreto imperscrutável... Sou acordada desse devaneio pelo plim da senha E759.
Mãos trêmulas entregam o protocolo, o parecer e a guia em três vias de pagamento. O inquérito vai começar. A escolha de palavras precisa entrar em sintonia com o vocabulário dele. Que me olha por cima dos óculos. Até que não parece tão mau. Não sei se leu Kafka.
Seus questionamentos se desenrolam como num rosário. Eu estou ali para informar meu CPF a cada quarto de hora, mas quem comanda é ele. Poderia até ser uma defesa de tese em que meu trabalho está sendo analisado. E a resposta demora.
Demora mais um pouco, e aos poucos me convenço de que ele não abrirá um alçapão que me lance em alguma masmorra gotejante.
Não, o burocrata de olhos azuis está disponível, gente, parece que ele realmente... quer me ajudar?! O cabelo grisalho indica que já viu muita mocinha confusa. Creio que ele passaria horas me atendendo, cogitando, revendo, procurando no sistema um insight que mudasse um pouco aquela brutalidade da soma que eu preciso pagar de imposto.
Saio muito mais pobre, mas com um sorriso no canto dos lábios, pensando se seria inconveniente enviar um presente de Natal. Quase dou tchauzinho para os próximos na fila.
Da próxima vez preciso levar um livro. Eis um verdadeiro pesadelo kafkiano: ficar sem nada para ler numa sala de espera.
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