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Livro

O Brilho do Bronze [Um Diário]

Boris Fausto. Cosac Naify, 240 pp., esgotado. (A editora prepara uma reimpressão que sairá no mês que vem).

Ainda abalado com a perda da mulher, Cynira, o historiador Boris Fausto lê uma entrevista da atriz Cissa Guimarães, que perdeu um filho atropelado. A entrevistadora pergunta: "O luto passa?". A atriz reage: "Não! Detesto esse papo de superação. Realmente me irrita quando dizem que sou um exemplo de superação. (...) Não superei e nunca vou superar". O depoimento de Cissa está registrado em O Brilho do Bronze (Um Diário) , as anotações de luto de Boris Fausto. Um delicado livro que afirma duas ideias contraditórias. Como diz Cissa, o luto não passa, nunca passa. Mas, simultaneamente: mesmo o luto está todo o tempo infiltrado por enfáticas manifestações de vida. Em resumo: vida e morte — que mantemos artificialmente afastadas por um abismo — na verdade não se separam.

Fausto não escreve para negar que a morte lhe pesa, não escreve para disfarçar a dor. Já ao final do livro, ele relembra, a propósito, os versos de Maiakóvski: "Nessa vida morrer não é difícil/ o difícil é a vida e seu ofício". A eles contrapõe uma observação sincera: "Humildemente, peço licença para discordar". A morte é difícil, sim, e tanto é assim que todo um diário (2010-2013) não basta para abrandar a dor. No livro, o historiador encena o sofrimento interminável da morte. Mostra-nos, ainda, como nele se infiltram contundentes manifestações de vida. O contraste, contudo, em vez de minorar a dor, a enfatiza. A escrita — do diário — na verdade não o salva: é uma espécie de jogo através do qual ele lida com sua decepção interminável.

Não, a escrita não salva, embora ela transforme a dor em alguma outra coisa talvez mais digerível. Uma dor com palavras — sempre roçada por lembranças, por imagens, por sonhos, que a ajudam a construir um lugar no real. São coisas pequenas, banais, que auxiliam Fausto, no entanto, a conservar um contato com a vida. No sítio de Ibiúna, em um fim de semana em que a tevê não funciona, se dá conta do quanto sua fala morna, mas constante, o acolhe e o aquece. "A tevê corta o silêncio, é uma voz que fala conosco, não exige esforço e, conforme o programa, nos absorve e arranca da tristeza". Pequenos sinais de vida que relampejam aqui e ali, enfatizando que, apesar do amor intenso que o unia a Cynira, ele continua separado e vivo.

No cemitério, fica um tempo contemplando os nomes de Cynira e de seu pai, gravados na lápide de bronze, "e imagino que o espaço entre eles será ocupado por mim". A morte da mulher inscreve no cotidiano a presença de sua própria morte — a morte em vida, como potencialidade, como fim inevitável, mas também como fronteira que delimita e valoriza a existência. Talvez como consolo, passa a se analisar com Marilúcia, a psicanalista da mulher morta. Talvez seja uma maneira sutil de, ocupando seu lugar — "encenando-a" —, manter Cynira viva. Admite que a análise o fez "avançar na compreensão do fenômeno do luto, embora compreensão e aceitação a realidade gerem sentimentos distintos". Compreender não é aceitar. Você pode apreender algo intelectualmente, mas isso não significa que essa apreensão se transforme em aprovação.

Esbarra em uma barreira invisível que separa, para sempre, os dois mundos — morte e vida. "Visita frustrante ao cemitério", anota. "Junto à lápide, não consegui me comunicar com Cynira e meu pai". A experiência do luto é, em grande parte, a aceitação desse abismo que não se deixa preencher. A escrita o envolve com seu manto de palavras — ela o aquece e suaviza, mas não o resolve. Não há solução. Durante as sessões de análise, ainda imagina um reencontro futuro com Cynira, "nós dois como duas luzinhas no infinito, pondo a conversa em dia". A psicanalista é áspera: "Você tem de partir do fato de que Cynira não existe mais". Só a aceitação do vazio abrirá espaço para uma escrita que, se não pode preenchê-lo, pode ao menos substituí-lo. Algo que — precário, fugidio, quase inútil — consiga se erguer e tomar seu lugar.

Com os filhos, quase nunca fala da ausência da mulher. Conclui: "Admito que o assunto seja difícil, mas tenho a convicção de que os mortos incomodam. Para que falar deles, se estamos vivos?". Se não é para ressuscitá-los (sonho impossível), para que seria? Quando pensa na mãe, de quem ficou apenas com uma imagem borrada, reafirma a potência das palavras — do diário — como uma espécie de moldura (de cerco), da qual a imagem de Cynira, embora feita de sonho, já não pode escapar. Aprende que, em matéria de perdas, os sentimentos são absolutamente enigmáticos. "Às vezes, perder um objeto insignificante pode dizer mais do que a perda de algo aparentemente inestimável". Não controlamos nossas lembranças — e o luto é, antes de tudo, um trabalho de memória. Um trabalho com imagens que, inesperadas, ressurgem e palavras que as bordam.

Leva tempo para conseguir escrever sobre as últimas semanas da vida de Cynira. À dor mais grave, quase palavra alguma corresponde. Ao contrário: muitas vezes é o esquecimento que salva. Em viagem de trabalho a São Francisco, não consegue tirar a mulher agonizante de sua mente. Faz uma conexão em Miami. Numa cafeteria, esquece os óculos. Depois, deixa para trás, no quarto de hotel, um pulôver e um boné. Quando volta ao Brasil, porém, o esquecimento não funciona mais. O fim se aproxima. É a própria Cynira quem o ajuda: "Boris, você precisa pôr na cabeça que somos duas pessoas, algum dia vamos ter mesmo de nos separar". Na análise, descobre agora que a morte da mulher o obriga a encarar a própria morte. Novamente os limites. Salvam as palavras de Cynira. Certa tarde, no hospital, ela olha para o marido e diz: "Eu fiz quase tudo certo na vida". Angustia-se, ainda assim, com o conteúdo da restrição "quase". Precisa aceitar a imperfeição — e é isso o que as palavras anotadas em seu diário lhe impõem.

Sozinho em casa, descobre um dia que a cozinha foi invadida por um rato, que "come pedaços de banana, tomate, mija e espalha sua caca miúda". Ainda que repulsivo, o rato é um sinal da vida que — imperfeita, desagradável e, tantas vezes, suja — insiste em estar ali onde a morte se impõe. O rato o lembra de que está vivo — e o diário é a armadilha que constrói para capturar a si mesmo.

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