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O que seria da vida se ela fosse pura ordem? Ainda faria sentido, nesse caso, pensar no humano? Se a vida fosse só método e conveniência, o que seria de nós? É a desordem – desvio da ordem e do cálculo – que funda o homem. Que lhe dá um nome (único) e uma identidade (singular). Só a desordem absoluta das impressões digitais nos confere um registro civil e uma soberania. É a inquieta expansão do universo que nos faz crescer. É a desordem, enfim, que, ao nos afastar do bom senso, nos empurra para nosso próprio centro.

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Não é possível pensar em arte sem considerar a presença da desordem. Não há poesia que mereça este nome sem alguma dose dela. Por isso, poetas perseguem, com grande fome, o desalinho e a imperfeição. "Você é esse monte de ossos/ imperfeitos e finitos", lembra-nos, sem piedade, o poeta Celso Gutfreind, no seu Em Defesa de Certa Desordem (Artes e Ofícios). Desafia, com firmeza, a arrogância da ordem. Enfrenta-a.

Na semana passada, na Festa Literária de Porto Alegre, assisti a uma palestra de Gutfreind. Autor de histórias para crianças e médico psicanalista, ele fala com desafetação e serenidade. Fala com o desalinho de quem pensa em voz alta, e não com a astúcia dos pregadores. Suas palavras grudaram em mim. Na manhã seguinte, dei uma caminhada pelo Parque da Redenção. Estava cansado. À tarde, uma oficina literária me esperava. Precisava de certa ordem interior como moldura para alinhar minha desordem. Levei comigo o livro de Celso Gutfreind, e volta e meia me detive para ler alguns poemas. "A ordem não altera/ a desordem bonita da alegria", ele me disse. "Só depois/ na ausência,/ vêm o vazio/ ordem dor/ e esta arte". Tudo o mais só vem depois de desarranjo e da imperfeição. Só do caos surge algum corpo. Eu precisava aceitar.

Sem a experiência anterior da desordem, nenhuma ordem se fixa, repeti, à tarde, a meus alunos de oficina. Nenhuma escritura toma forma. A ordem (o limite) precisa da desordem (a vida primária, em ebulição) para erguer seu cerco. Caso contrário, ela se torna só um muro contra o qual a vida bate e se desmancha. É verdade: o poeta cria, quase sempre, a partir do vazio e da dor. Mas necessita de uma certa desordem para arrancar, da ausência e sofrimento, alguma alegria. Enfatiza Gutfreind: "Se não há certa desordem,/ se sujeito e predicado,/ depois advérbio à espera/ do ponto final, não é". Sintetiza: "Se for com lógica/ também não é". Mas então quando é? Quando, enfim, surge um poeta? Responde: "Fica sendo quando/ curto/ súbito/ bagunça/ subverte/ desconcerta".

Poesia trêmula e tensa, que interroga a si mesma, a de Celso Gutfreind não teme as desordens do corpo, não se esquiva da turbulência dos palavrões, não descarta a ebulição do erotismo. É uma poesia que se faz das partes mais íntimas do humano, mesmo daquelas que habitam territórios, na aparência, fora do poético. Argumenta: "O escritor tem mais chance que o andarilho/ Porque a palavra escrita estica a paisagem/ O fotógrafo tem mais chance que o escritor/ Porque a imagem diz mais do que a palavra/ O músico tem mais chance que o fotógrafo". E a supremacia da música, que é pura sensação, não precisa se explicar. Sabe Gutfreind, em consequência, que sua arte é limitada – já que a palavra sempre corta. A palavra retalha. A palavra é uma rede com que o poeta luta para capturar o absurdo.

Nada mais faz que entregar esta luta ao leitor. O artista tem sentimentos, mas não os leva para casa: cabe-lhe a missão pesada de expressar. "Ou seja, de-/ sobedecer a química, / à física à biologia/ e te carregam sem ti". Na arte – na poesia – o sujeito se despede de suas crenças. De suas margens. Entra em certo estado de colapso, que o sacode para fora de si – como os cães que, com o balançar dos pelos, expulsam o que os incomoda. O artista, diz Gutfreind, expõe os sentimentos e, com isso, deles se separa. Somos, mesmo na maturidade, semelhantes aos bebês, que fervem de emoções. Continua: "O bebê tem uma caixa/ para guardar as noções./ É noite, e está vazia/ de ideias, mas muito cheia/ de horror, amor, esperança". Pode não pensar, mas sente. Ainda não tem a posse do nome, mas um nome já o possui.

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Com a mesma matéria primária, o poeta, por mais culto que se arvore, é obrigado a se ver. Como um bebê, que chora sem saber por quê. Só quando cresce, o bebê saberá de onde veio e onde está. Mas essa parte antiga, no poeta, nunca se extingue. A partir da primeira desordem, em que as palavras não passam de murmúrios, ele escreve seus versos. Também o corpo, nos alerta Gutfreind, vive em estado de convulsão, e é dele que poetas arrancam alguma beleza. "As células não são quietas,/ tampouco definitivas./ Lógica não manda nelas/ nem o tempo em movimento./ A alegria decide se elas morrem/ ou se ficarão vivas". Enquanto isso, a beleza varia "não conforme a luz,/ mas, novamente e sempre, a alegria". Muito mais que um efeito do biológico, a beleza se guarda no interior do corpo. Vem daquilo que não se vê e, no entanto, se mostra. Registra o poeta: "Já ouvi um sorriso tornear a coxa./ Já vi um desejo esculpir a bunda". Sem desejo, beleza não há.

Filhos de desordem, precisamos de alguma ordem para não nos afogar. Para que a desordem essencial, enfim, apareça. Triste é a vida sem qualquer instabilidade e erro. Alerta-nos Celso Gutfreind que o mais prudente é abandonar as ideias fixas. "Os loucos as crianças os viajantes/ cavalgaram bom bocado/ com ânsia e estão livres/ do significado". Defesa radical da poesia que, independente de seus conteúdos, conduz sempre ao desconhecido. E, se é desconhecido, alguma (certa) desordem sempre haverá.

Por isso prefere Celso permanecer ao lado dos "artistas ardentes sem disfarce". Daqueles que não têm mundo fixo. Dos que não temem expor seu tremor. Que dispensam as máscaras, mesmo que seja para exibir um rosto de cicatrizes. Fica o poeta com a desordem que – limitada por um desejo de ordem que nunca se satisfaz – é o que nos move. A certa (e indispensável) desordem que nos mantém alerta e vivos.