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Ensaios

O Rei Se Inclina e Mata

Herta Müller. Tradução de Rosvitha Friensen Blume. Biblioteca Azul (Globo Livros), 216 págs., R$ 39,90.

A primeira imagem do rei que a escritora alemã (nascida na Romênia) Herta Müller conheceu não veio dos contos de fadas, mas de uma peça de um jogo de xadrez que seu avô construiu na prisão. Fazer aquele xadrez deu segurança ao avô prisioneiro. Mais do que depois jogar com ele, fazê-lo foi o que o salvou. O avô jogou xadrez o resto da vida. Só parou quando o último companheiro fiel de jogo faleceu. Então, passou a jogar cartas com a família.

Reis têm uma imagem complexa: falam da grandeza, mas também da tirania, da insegurança, e ainda do poder de salvar. A palavra "rei" se tornou, por isso, uma palavra central na obra de Herta, nascida em 1953. Desde menina, se intrigou com a linguagem usada na imprensa da República Democrática Alemã, a comunista, para se referir às coisas comuns. Por exemplo, não se falava nos "anjos das árvores de natal", mas nas "figuras-aladas-de-fim-de-ano". Não falavam em bandeirolas, mas em "elementos de abanar", para assim não ferir a honra dos símbolos do Estado. Ninguém falava em caixão, mas em "móvel de terra", e uma repartição do serviço secreto era chamada, em geral, de "alegria e tristeza".

Essas contorções da linguagem levaram Herta, desde muito cedo, a se impressionar com a maleabilidade e a potência das palavras. Ela relata essas lembranças no ensaio que dá título à coletânea O Rei Se Inclina e Mata (Biblioteca Azul). Muitos ecos se guardam dentro de cada palavra, ela medita. "Móvel de terra" (para caixão) é, por exemplo, "uma palavra em que se ouve o medo da morte". Conclui a escritora, ainda, que "a verdade está nas palavras estranhas". Sempre que a língua é retorcida, amarrada, algo se esconde nas entrelinhas. "Quando se quer descobrir a verdade, precisa-se encontrar essas palavras que se misturaram entre as outras, que não nos dizem respeito".

Em sua delicada reflexão sobre a linguagem do poder, que tanto pode ser bom (alimentar) como mau (matar), Herta Müller conclui que, entre os diversos reis existentes, é o rei da cidade quem se inclina e mata. "O rei da cidade não revela as suas fraquezas, quando ele cambaleia, parece que está se inclinando, mas ele se inclina e mata", justifica. Na sua história pessoal e em suas lembranças, este rei tem um nome: o ditador romeno Nicolae Ceaucescu (1918-1989), que presidiu o país durante 24 anos. Herta passou a infância em uma pequena aldeia da região do Banat, dominada pela rotina das cooperativas agrícolas. Adulta, estudou literatura germânica em Timisoara, capital da província. Foi ali que tomou contato com a verborragia exagerada dos funcionários oficiais e que passou a entender que o poder se infiltra nas palavras e nós o engolimos.

"Procurávamos por saídas que porém não havia em lugar algum", ela rememora. Aí lhe surge a literatura (a palavra de novo) como porta de salvação contra as próprias palavras. Todos estavam tomados pelo medo, cada um a seu modo, e Herta aprendeu a observar "em que posição estava o medo de cada um". Foi a literatura quem lhe deu a expressão "fera d’alma" (Herztier no original), "um sinônimo que inventei para encobrir a palavra rei". Na cidade, o rei estava por toda parte, estava escondido nas coisas. "O rei estava na minha cabeça desde a infância. Ele estava enfiado nas coisas. Mesmo que eu nunca tivesse escrito uma palavra, ele estaria estado presente".

"Fera’alma", na verdade, não fala só do rei, mas também da "gana de viver" que a onipresença do rei provoca. "Eu queria uma palavra de dois gumes, tão de dois gumes quanto rei deveria ser", explica. Uma palavra que, como um rei, salva e fere ao mesmo tempo. A ideia de um rei, diz Herta, surge sempre que não há mais lugar para o pensamento. Aquilo que fica fora do pensamento, aquilo de que o pensamento não dá conta, é o poder do rei. É o impossível, talvez o absurdo. Por isso, a presença do rei a seguiu pelo resto da vida, mesmo quando se mudou para a Alemanha. "O rei me seguiu primeiro do vilarejo para a cidade, depois da Romênia para a Alemanha, como reflexo das coisas que para mim jamais se esclareceriam". Luta para defini-lo com mais precisão: "Ele personifica toda a extensão das coisas; quando não há mais palavra que sirva na corrida errante do pensamento, digo até hoje: opa, lá vem o rei".

Cada vez que o real lhe dava um golpe – o "suicídio" do amigo Roland, enforcado na prisão – a presença do rei se impunha. Horrorizada, Herta passou a evitar os laços e as cordas. "Após o enforcamento do amigo passei a ver todos os laços em todos os lugares com outros olhos". Passou a temer e a evitar, por exemplo, as alças de apoio que existem dentro dos ônibus. "Se um casaco está pendurado num cabideiro, ele tem, por um instante, como se houvesse um estalar de dedos no cérebro, pés que, então, desaparecem de novo". Herta vê a presença e a astúcia do rei presente até nos contos de fadas romenos. Imita o estilo retorcido das narrativas romenas para as crianças: "Era uma vez do jeito que era. E isso foi naquele tempo, quando era, do jeito que jamais havia sido. Era uma vez, quando era indiferente o jeito como era. E era uma vez, em que não se sabe quantas vezes já fora". A questão não estava no que se pretendia dizer, mas na forma extravagante e torta de dizer. As afirmações são contorções. Contorções da linguagem, que se torna um instrumento de muitos gumes.

Herta Müller fala (inventa) pelos poderosos: "Tínhamos uma visão ampla de nossos labirintos fraseológicos, possuíamos uma espécie de soberania territorial, inseríamos tantas trilhas e desvios até que nossas cabeças zuniam". A serviço dos tiranos, as palavras se enroscam e se esgoelam. As frases tortuosas do regime romeno ensinaram a Herta Müller a grandeza, mas também o perigo guardado na língua. Instrumento de dois gumes, devemos estar sempre alertas quando a manipulamos. A grande estratégia do rei é se fazer amar e as palavras são muito eficazes para isso. Elas incham nos corações. Elas se erguem no lugar de coisas que estão acontecendo em silêncio e que não correspondem a nome algum.

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