Coletânea
Literatura e Revolução
Organização de Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes. Editora UFMG, 224 págs., R$ 48. História.
Escritores são, antes de tudo, seres famintos. A literatura provém dessa fome, dolorosa e persistente, que nunca os abandona e da qual eles arrancam, aos nacos, seus escritos. "É a fome que faz falar", diz o crítico francês Jérome Thélot. "A própria palavra se origina da fome". A origem carnal da literatura, sugerida por Thélot, é explorada por Ana Kiffer, professora da PUC-Rio, no breve mas contundente ensaio "Fome e Revolução". Eu o encontro na coletânea Literatura e Revolução, organizada por Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes para a editora da Universidade Federal de Minas Gerais.
Parte Ana de dois personagens emblemáticos: o cineasta Glauber Rocha, criador da "estética da fome", que dispensa apresentação; e o cientista social Josué de Castro (1908-1979), autor não só de Geografia da Fome, de 1946, um dos clássicos fundadores da sociologia brasileira, mas também do inquietante Homens e Caranguejos, romance que publicou no exílio, em 1967. Glauber e Josué foram dois homens movidos pela obsessão da revolução. Projeto, o revolucionário, que atravessou, de modo decisivo, o século 20 mesmo século que se encarregou de destruí-lo.
A fé na revolução decaiu, mas o impulso que a moveu, o de matar a fome do mundo, se disseminou e, até hoje, nos perturba. Quando o projeto revolucionário dava sinais de esgotamento, Josué começou a pensar em uma "revolução espiritual", enquanto Glauber o transformou em uma espécie feroz de metafísica, que visava uma "educação do espírito". Dessa guinada resultou, no caso de Josué, o romance Homens e Caranguejos, cujo significado o próprio autor teve dificuldades para compreender. Ele se pergunta: "Mas será mesmo este livro um romance? Ou será mais um livro de memórias? Talvez, sob certos aspectos, uma autobiografia?" Logo depois, reflete a respeito de sua formação intelectual que, no momento extremo, o levou à ficção: "Essa é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos, pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos".
Alongo-me nessa citação (que tomo de empréstimo a Ana) porque ela resume, com uma frieza espantosa, a condição dupla anfíbia do escritor. De um lado, é a fome que o empurra e o leva a escrever (falar); de outro, o texto que dela resulta se oferece ao leitor como uma boca, que não apenas fala, mas alarga a fome. A ideia de revolução pode ter passado; a presença da fome, que começa nas necessidades da carne e se alonga no desejo, nunca termina. Não importa (e os casos de Glauber e de Josué demonstram isso): ambas resistem no centro da escrita.
Ana Kiffer fixa sua atenção nas possibilidades de sobrevivência do ideal revolucionário, entendido como melhor resposta à fome e seus sofrimentos. Sintetiza sua perplexidade em uma pergunta: "A fome não tem fim e por que sim a revolução?" Lamenta-se dos "fins empobrecidos" tanto de Glauber como de Josué, para se interrogar a respeito de possíveis transformações do projeto revolucionário. Vivendo em um século que vacila entre a rigidez e a desordem, Ana termina seu ensaio, porém, não com respostas, mas com perguntas. Assim: "O fim de uma época revolucionária teria coincidido com o incremento, cada vez mais poderoso, de um esquecimento de nossa própria fome? Dos fast-foods aos inibidores de apetite?"
Ampara-se Ana, ainda, no pensamento da teórica Judith Butler para quem, "se não temos uma ideia metafísica da revolução, temos simplesmente que aceitar o fato de sua perda insubstituível". Sem o ideal revolucionário, a fome restaria como uma ferida para sempre aberta. Sem aceitar, é claro, a dor dos famintos, pergunto-me, contudo, se a fome não está no fundamento do humano. Não "é" o próprio homem. Arrisco-me a pensar assim não para justificar a indiferença e defender o egoísmo, ambos sempre repulsivos. Mas, ao contrário, para pensar em sua insuportável persistência. Se a fome persiste para além do ideal da revolução, mas se ela lhe é igualmente anterior, poderemos encontrá-la na base de todo projeto humano. Também na literatura: e tanto o único romance de Josué, como as palavras finais de Glauber dão conta disso.
Não creio que Homens e Caranguejos, o romance híbrido de Josué, assim como as meditações metafísicas de Glauber, sejam os sinais de uma derrota. Ao contrário: vejo-os como manifestações de uma persistência, para além das possibilidades reais desse ou daquele projeto político. Só os dogmáticos se julgam os únicos donos de algo que pertence a todos os homens. De uma fome que se transfigura em acontecimento e com a qual estamos todos (famintos ou não) comprometidos. Já não podemos mais depositar nossas esperanças nos grandes impérios que os ideais da revolução, depois de construir, ajudaram a ruir. Mas ainda podemos apostar nas pequenas obras palavras, filmes, ficções nas quais persiste a inquietação diante do inaceitável.
Não vejo Josué e Glauber como heróis decaídos. Ao contrário: para além de seus sonhos e de seu fracasso, uma força indestrutível a eles sobrevive, abrigada em suas palavras. Não sei se entendi bem a ideia de Maurice Blanchot com que Ana Kiffer encerra seu ensaio. Não importa: eu a uso, aqui, como posso. A hipótese de que a revolução é um projeto sem herdeiros "nem mesmo herdeiro dele mesmo". Ideal esgotado, sem que se esgote a fome que o gerou. Ideia, como diz Blanchot, que seria "sempre chamada a se deixar perder". Com ela não se perde, contudo, a fome que a move.
Os escritores desde os mais bem-sucedidos aos mais miseráveis conhecem bem isso. Um grande incômodo continua a sacudir o espírito daqueles que se põem verdadeiramente a observar o mundo. Já não há mais lugar para as grandes ilusões, mas ainda existe um espaço para os pequenos sonhos, que talvez sejam muito mais devastadores. E a literatura é um dos melhores, senão o melhor que conheço.
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