Livro
O Doente
André Viana. Cosac Naify, 128 págs., R$ 29,90.
Poucas vezes o silêncio me pareceu tão importante em uma narrativa como em O Doente (CosacNaify), romance de estreia de André Viana. A história é frequentemente interrompida por breves lacunas, representadas por uma sucessão de travessões. O protagonista de André "dita" um depoimento pessoal a um colega de trabalho e o que lemos é a transcrição dessa entrevista. As interrupções, porém, em vez de tornarem o livro artificial, o aproximam da realidade. É com muitas falhas e elipses que conseguimos nos expressar. Nossa fala está presa a hiatos, a silêncios muitas vezes mais significativos do que o que dizemos.
O narrador faz um resumo de sua vida desde a infância. É marcado pelas ideias do fracasso e da imperfeição de que estaria adoecido. "Viver é prejudicial à saúde", dizia o escritor curitibano Jamil Snege. A perfeição é só um ideal inexistente. O protagonista de O Doente, porém, não se convence disso. Depois da morte do pai, um domador de pulgas que apresentava seus shows nas mansões da burguesia paulista, ele passa a sentir, ainda com mais intensidade, sua condição imperfeita e na verdade humana. Seu depoimento é um retrato de sua experiência com os limites do humano.
Curioso que as cenas de sexo, que em geral os escritores relatam com tantos hiatos, aparecem completas e descritas aos detalhes. O que se esconde é outra coisa: não nossa animalidade, mas nossa humanidade, ela sim parecendo vergonhosa. A sucessão de amores do protagonista é uma sequência enervante de derrotas. O livro traz inclusive algumas páginas em branco. Mas de que outra coisa se compõe a vida, senão de desvios, de vazios e, sobretudo, de veementes silêncios?
Uma recordação pessoal me vem durante a leitura de O Doente. Nos anos 1990, também eu gravei uma longa série de entrevistas com o poeta João Cabral de Melo Neto. Havia sempre um momento em que Cabral silenciava e me pedia para desligar o gravador. Então, revelava não sei se as coisas mais importantes, mas aquelas que ilustravam melhor o homem que foi. Não o "grande poeta", mas o ser humano com seus defeitos, seus furos, sua incompletude. Era nesses momentos em que o gravador estava desligado que o poeta se empolgava mais, se entregava mais, se mostrava com mais afinco.
Também é assim no romance de André Vianna. Os momentos de silêncio, ou quando o narrador afirma que tal história "não vem ao caso", são os mais fortes. O leitor fica a se perguntar que segredos se escondem ali. Vantagem do silêncio: ele abre a possibilidade de perguntas e é justamente por isso que o livro de André se torna tão desafiador. O que se esconde? Por que o narrador nos oferece tantos parênteses? Por que se abstém tanto de dizer? "Eu confesso que fico na dúvida se devo expor as pessoas desse jeito. Seja lá o que você for fazer com essas gravações, o que peço pelo amor de Deus é que mude pelo menos os nomes", diz ao amigo. Mas não é só para proteger a privacidade alheia que o narrador silencia, lançando-se em súbitas pausas que fraturam o relato.
Há algo aí que é inerente à própria fala e à própria escrita. Se dizemos uma coisa, estamos deixando de dizer outra. Se fazemos uma afirmação, estamos ainda que sem pensar nisso fazendo também uma série de negações. A morte do pai é um hiato que ele não consegue preencher. A presença insistente do cinema o pai deixa a função de domador de pulgas para comprar uma pequena sala de projeção , representada por inúmeras citações, deixa de fora tantas outras. Estamos sempre dizendo e, ao mesmo tempo, escondendo. Também a loucura do irmão, que acontece oito ou nove meses após a perda do pai, é uma falha que não se resolve. De onde vem a loucura, segundo o próprio irmão? Da retenção em demasia da tristeza. De novo, de um intervalo. Mais uma vez: do silêncio, que nos protege, mas nos condena.
Os médicos dizem que o irmão é esquizofrênico. "Mas isso só muito tempo depois foi diagnosticado, quando minha mãe resolveu que o problema já não era exclusivamente nosso, deixa eu ir ao banheiro rapidinho". Essa abrupta interrupção do narrador para usar o toalete é só um exemplo do modo como uma segunda realidade se interpõe e corta a primeira, cavando buracos que desestabilizam a confiança do leitor. "Não existe leitor passivo", disse o crítico americano Harold Bloom em recente entrevista. O leitor está sempre exposto a choques e a rasteiras. Também a loucura do irmão pode ser entendida como um golpe que o real que é sempre imprevisível dá em nossa mesquinha realidade.
A doença do rapaz começa com febres súbitas antes do amanhecer lapsos em seu contato com mundo, novamente silêncios. Também a experiência do narrador com o real é apunhalada pela presença de pausas compulsórias e coisas que não se devem pronunciar. "De um modo geral, as relações familiares são sempre veladas. Isso é algo que sempre me impressionou. É como se existisse um ralo natural pra onde as verdades familiares escorrem". Quando chegam os momentos de revelação, ele prossegue, "você é pego de surpresa com coisas que não eram pra ser vistas, ou sabidas, ou entendidas".
A aprendizagem do narrador se faz, assim, através de uma interminável série de sobressaltos, provocados pelos deslocamentos súbitos em que o mundo nos arrasta. Você pensa em uma coisa, e está diante de outra. Chega a uma conclusão, mas logo a desmente. A vida é deslizante e a literatura quando praticada com o vigor de André se torna um instrumento de revelação de nossos limites. Infelizmente nem todos suportamos a liberdade, experiência por vezes tão intensa que chega a latejar. Lembra o narrador que há um personagem em A Primeira Noite de Tranquilidade, o filme de Valerio Zurlini interpretado por Alain Delon, que diz: "Nada como a falta de liberdade para proporcionar momentos de alegria". É horrível que seja assim, que precisemos da prisão para imaginar a felicidade. Em dado momento, ele pensa em se isolar para não se contaminar pela doença da família. Necessita, mais uma vez, do abrigo de uma falha, de um silêncio, para voltar a si e a seu destino.
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