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Reedição

Feliz Ano Novo

Rubem Fonseca. Agir, 168 págs., R$ 29,90.

Fixo-me em Feliz Ano Novo, o conto que empresta título ao já lendário livro que Rubem Fonseca, cuja obra vem sendo relançada pela editora Agir, publicou em 1975 Não só, provavelmente, é o mais cruel relato da coletânea, mas uma das narrativas mais violentas produzidas pela literatura brasileira dos anos 1970. O conto guarda uma estranha síntese dos métodos da ditadura, que se espalharam pela entranhas da sociedade brasileira na ordem de uma peste — o livro de Fonseca seria censurado no ano seguinte ao seu lançamento. Antes de tudo, a violência, arbitrária, indiferente ao sentido, cruel que, na narrativa de Fonseca, deixa os cárceres do poder para penetrar na penumbra do dia a dia e se transformar em um método de ação. Contra a violência, mais violência. Contra a miséria, mais miséria. O método nefasto da duplicação e da retaliação.

É bom recordar a terrível história que Rubem Fonseca inventou como um espelho invertido da ordem ditatorial vigente. Espelho que, de resto, já estava infiltrado em toda a realidade brasileira, espalhado por ela, duplicado em suas dobras mais íntimas. Numa noite de ano novo, sem ter coisa melhor para fazer, desesperados, cheios de fome, um bando de criminosos resolve assaltar uma mansão de São Conrado, no Rio de Janeiro, onde 25 pessoas comemoram a noite de réveillon. Não querem só roubar: querem chocar e tripudiar, isto é, impor uma nova forma de poder sem limites. Antes de planejar o assalto, seu projeto era almoçar, no dia seguinte, os restos dos despachos de macumba armados nas encruzilhadas cariocas. Mas era muito pouco, e eles decidem querer mais.

O mais miserável dos miseráveis é Pereba, "vesgo, preto e pobre", e que vive atordoado não só pela fome de comida, mas de sexo. "Ele falava devagar, gozador, cansado, doente". O personagem indica a presença ostensiva de dois elementos centrais na violência total: a doença e o humor negro. A presença de Pereba empresta à trama de Fonseca uma estranha forma de delicadeza: a delicadeza do desespero. Invadem a mansão de São Conrado, mas como não têm só fome de dinheiro, mas sobretudo de poder sem limites, se põem a praticar as mais sórdidas barbaridades. Dias antes, Zequinha e Pereba perambulavam pela boca do lixo de São Paulo, bebendo e namorando, gastando os "lucros" de um assalto a um supermercado do Leblon, no Rio. Eram dois homens normais — dentro dos imensos limites que abarcam aquilo que, por falta de coragem para encarar a diversidade do mundo, chamamos de normalidade. Agora se transformam em dois monstros — os mesmos monstros que carregavam dentro de si nos dias em que foram apenas homens distraídos e felizes. Rasgão fundo, dupla ferida no coração do humano.

Uma sombra da ditadura — com seus cárceres, seus rituais de tortura, sua brutalidade, sua total cegueira — se derrama agora sobre o estilo requintado de crueldade praticado pelos assaltantes, que se estendem muito além de seus objetivos pragmáticos. Não basta cometer o crime: é preciso que ele seja escandaloso e que imponha uma noção de poder associada ao desempenho e à vaidade. Um poder total, que se sobreponha a qualquer traço de cultura, ou limite civilizatório. O que os move? Em parte, as vítimas anteriores da violência policial — de Estado — que aniquilou alguns de seus comparsas, como o Bom Crioulo, morto com dezesseis tiros (um só não seria suficiente para promover a morte?). Como o Tripé, dublê de boneco de pano em quem os policiais atearam fogo. O Vevé, simplesmente morto estrangulado. Ou o Minhoca, lançado dentro do rio Guandu como um entulho. Há um "estilo" de poder total que se espalha pelos dois lados da cena: policiais e criminosos o cumprem à risca, e com grande requinte. A ideia central é: poder tudo. O desejo: exibir este poder que não tem freios. Um poder sem fronteiras.

Por isso agora — trocando o plano de roubar um banco pelo assalto à mansão na noite do réveillon — eles matam a esmo, quase "por esporte", comparando estilos e métodos, equiparando competências, medindo forças e estratégias. Por isso agora já não basta a violência, mas é preciso que ela venha decorada pelos horrores da escatologia e do deboche amargo. Por isso eles matam brutalmente Maurício, o convidado bem educado, que se oferece como intermediário: para demonstrar que não existe mediação, que a realidade está partida ao meio para sempre e a única forma de contato entre seus dois lados é o choque brutal. Há uma "arte de matar" que Zequinha e seu bando aprimoram com afinco, "arte" que, em vez de conferir sentido à morte, a envolve ainda em mais arbitrariedade e mais horror. "Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou grudado". A morte como esporte, terreno de medição e competição da pura força, tudo realizado na mais absoluta impessoalidade — como se não existissem sujeitos dentro daqueles corpos. Como se fossem fantoches do poder totalitário, que os manipula para cá e para lá, unicamente para se divertir e se afirmar como total.

Para culminar, o estupro — a violência invadindo o terreno da mais íntima sensibilidade. A moça luta, tenta resistir, mas Zequinha dá uns murros nela e ela sossega, não tem escolha. Atravessa a cena de olhos abertos, olhando para teto, como que crucificada na própria dor. No fim, ainda o deboche: "Muito obrigado pela cooperação de todos". Ninguém responde, pois o que fica depois de violência só pode mesmo ser o silêncio. O vazio. Tudo se foi naquele teatro em que os assaltantes, além de assaltar, ou ainda mais que assaltar, encenam seu poder sem limites, impõem seu estilo, manipulam outros corpos, transformando-os em símbolos da ausência do humano.

Não é de espantar, ainda, que Feliz Ano Novo nos fique como uma espécie de marco zero de uma violência — de irracionalidade, de mascarados, de anonimato, da brutalidade total — que ainda hoje, apesar dos anos já longos de democracia, ainda se encenam em algumas ruas do país. Uma espécie nacional de ovo da serpente. Tudo está ali sintetizado: a aprendizagem do terror, o poder invadindo com suas garras as intimidades, os métodos de domínio, de sujeição e de gozo. Deles se valeu, a seu tempo, a ditadura — para dominar, para oprimir, para aterrorizar, para submeter. Deles se valem ainda hoje, aqueles que encaram o poder como uma espécie de capa malévola cuja função é encobrir toda a realidade para transformá-la em uma eterna noite. Mudam os tempos, as realidades políticas, as conjunturas, os personagens, as classes sociais — tudo se altera, menos a violência que permanece como uma bala intacta a oprimir nossa alma.

Hoje, quando leio na imprensa o caso de uma pobre mulher arrastada por um carro de polícia, constato que, infelizmente, Feliz Ano Novo não terminou. Não: na realidade dos fatos, o conto de Rubem Fonseca continua a ser narrado. Talvez ele seja uma marca tardia do mal original incrustado no humano. O mal como algo de que, infelizmente, por mais que lutemos, não podemos nos livrar. Mal de que as ditaduras se aproveitam e no qual investem para fixar e expandir seu poder total. Mal do que os desesperados se valem para ultrapassar a si mesmos e impor aos outros o mesmo inferno em que vivem. Vingança, gozo com a morte, celebração da dor. Podemos chamar como quisermos esse quisto que se infiltra no destino humano. Fonseca foi, com seu conto, um dos mestres em sua detecção e sua denúncia. Ajudou-nos a ver aquilo que só com muito sofrimento conseguimos ver. E que, no entanto, é preciso ver, ou não sobrevivemos.

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