Ensaio
As Duas Clarices Entre a Europa e a América
Lúcia Peixoto Cherem. Editora Universidade Federal do Paraná, 289 págs., R$ 35
Em uma carta endereçada a Clarice Lispector, o insuspeito João Guimarães Rosa foi taxativo: "Clarice, eu não leio você para a literatura, mas para a vida". A confissão de Rosa nos é trazida, agora, por Teresa Monteiro em seu prefácio para As Duas Clarice Entre a Europa e a América, ensaio de Lúcia Peixoto Cherem sobre a leitura e a tradução da obra de Lispector na França e em Quebec, lançado pela Editora da Universidade Federal do Paraná. Em Paris, a obra de Clarice foi disseminada por Hélène Cixous, que ministrou seminários sobre a autora de A Paixão Segundo GH nos anos 1980 e publicou dois livros sobre ela. Em Montreal, a tarefa foi abraçada por Claire Varin, que publicou dois outros livros. Hélène e Claire se espantaram com o poder de penetração da obra de Clarice Lispector no que chamam de "imaterialidade do mundo". Uma obra que, nos sugere agora Teresa Monteiro, alia o saber ao sentir. Que alia o conhecimento ao ímpeto.
Prudente, Lúcia Cherem se apoia em autores como o filósofo da ciência Paul K. Feyerabend, cujos estudos libertaram as pessoas de conceitos como "verdade", "realidade" e "objetividade", que só as prendiam. Como Clarice, Feyerabend valoriza, ao contrário, a experiência singular e o espanto como vias régias de acesso ao real. Lúcia Cherem lê a obra de Clarice Lispector desde cedo. Essa leitura se mistura com sua existência. Compartilha com a escritora a mesma atitude espantada diante das coisas. Como diz a própria Clarice em GH: "A realidade é a matéria prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la e como não acho".
Descobridor da obra de Clarice, o crítico prestigiado Antonio Candido recorreu a uma confissão pessoal para descrever o impacto que ela lhe provocara. "Tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do Coração Selvagem", ele escreveu, referindo ao livro inaugural de Clarice Lispector. Avaliação repetida por Hélène Cixous, quando ela descreveu: "As coisas belas só nos vêm de surpresa". Tanto Hélène, quanto Claire valorizam a ficção de Clarice como uma tensão máxima entre a lei e o caos. Sempre a definem como uma "escrita de tensão", ou mais precisamente, de tensão espiritual. A escrita de Clarice que Hélène afirma ser escrita não em português, mas em "Lispector" é uma escrita que procede do corpo e que, nesse sentido, se é obcecada pela linguagem, vê também a linguagem como fracasso e como prisão.
Lembra-nos Lúcia Cherem que a psicanalista Betty Milan associa a proliferação da obra de Clarice na França nos anos 1970 à descoberta do pensamento de Jacques Lacan. Ambos tratam da mesma maneira a palavra, a ignorância e a história. Foi um momento em que o multiculturalismo começava a ser afirmar na Europa. A ênfase na diferença se tornava uma ideia fixa. A essa procura se alinha a obra de Clarice, que tem por objeto "narrar o indizível". Incluir justamente aquilo que a linguagem não consegue incluir. Para Clarice, assim como para Lacan, a história em si é o que menos importa, mas sim a verdade que nela subitamente emerge. Considera Lúcia que a leitura de Clarice promovida por Hélène é, antes de tudo, uma "crítica poética". Escreveu Hélène sobre ela: "Era uma mulher quase inacreditável. Ou melhor: uma escrita inacreditável".
Tanto Hélène como Claire têm como ponto de partida de seus estudos o choque (os efeitos) produzido pela leitura de Clarice Lispector sobre seu leitor. Também no caso de ambas, foi assim através de um impacto brusco e violento que a paixão pela obra da escritora brasileira se iniciou. Recorda Lúcia Cherem que, para Claire, a descoberta da obra de Clarice foi "um acaso no sentido dos surrealistas, algo de improvável e absolutamente necessário". Hélène Cixous, por sua vez, já repetiu várias vezes que seu encontro com Clarice foi a descoberta de um outro de um duplo. Durante a temporada que viveu no Rio de Janeiro, Claire Varin repisou, por acidente ou não, muitos fatos da vida de Clarice. Morou no bairro do Leme, nas proximidades do edifício em que Clarice morou durante seus últimos anos de vida. Como ela, fez caminhadas pelo Jardim Botânico, foi a uma cartomante e "encontrou uma barata de olhos negros no quarto" a mesma que está no centro de GH. Avalia, assim, que viveu com Clarice "não só uma identificação espiritual, mas também concreta, corpórea, vital".
"Clarice lida com aspectos da alma humana que ultrapassam as discussões de uma época", avalia Lúcia Cherem. O contato com suas ficções arrasta seus leitores como uma impetuosa torrente. Daí o aspecto religioso dessa leitura aproximando o leitor do que se parece com uma religião laica. Avalia Lúcia que a obra de Clarice deseja "unir intelecto, reflexão a jogo infantil, impulso físico, vida bruta". Carrega consigo, assim, uma série de paradoxos que, em vez de tentar resolver, ela só exacerba. Disse a própria Clarice certa vez: "Sempre quis comunicar as coisas da maneira mais crua e direta possível, e as pessoas talvez tenham aversão ao que é comunicado de forma direta". Daí que uma das marcas mais admiradas em Clarice por suas leitoras estrangeiras seja a simplicidade à qual, infelizmente, algumas traduções de sua obra nem sempre correspondem. Lembra Lúcia, nesse aspecto, de uma frase de Clarice: "É maravilhosamente difícil escrever em língua que ainda borbulha, que precisa mais do presente do que mesmo de uma tradição".
A esse respeito, Hélène Cixous nos lembrou que "para chegar a escrever como se fala, é preciso levar a escrita ao ápice". Mostra-nos, enfim, Lúcia Cherem, como essas leitoras estrangeiras, ainda que de forma diversa, foram contaminadas pela obra de Clarice com o que isso inclui de ignorância e de embriaguez. Lembra-nos, ainda, que Clarice Lispector tem uma "relação mística com a língua". Uma estranha religiosidade que se coloca além de deus. A esse respeito, recorda Lúcia de um comentário feito por Benjamin Moser, o biógrafo norte-americano de Clarice: "Deus teve de abandonar Clarice Lispector para permitir que ela começasse a sua própria obra de criação". Obra que ultrapassou as fronteiras brasileiras e que, até hoje, espanta leitores de todo o mundo.
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