A escrita não vem nem quando, nem de onde esperamos. Ela procede de regiões nebulosas, que muitas vezes guardam uma aparência inóspita, ou mesmo infértil. Percorre vias desconhecidas, sobretudo por aqueles que as atravessam. Um dia como aconteceu com o engenheiro português João Ricardo Pedro, de 39 anos , sem acreditar muito nisso, você tem um romance pronto. Você só anotava algumas histórias, ideias soltas, imagens vagas mas, de repente, descobre que tem um livro. Ele parece não lhe pertencer, mas a um desconhecido. Não combina com seu destino e, nem mesmo com seus desejos. No entanto, ele está ali. É preciso, então, a coragem de sustentá-lo.
João Ricardo teve a coragem de inscrever seu O Teu Rosto Será o Último (Leya) no Prêmio Leya 2011. Trata-se do mais prestigiado prêmio português para ficções inéditas, que só são aceitas sob pseudônimo, com identidades verdadeiras lacradas. Provavelmente, e apesar da coragem, João Ricardo não guardava grandes esperanças. Era seu romance de estreia. Foi escrito para "suportar o tempo", como ele mesmo declarou depois em um difícil período de desemprego e desânimo. Para preencher o vazio.
Nascido na freguesia de Reboteira, pequena vila de 15 mil habitantes na periferia de Lisboa, João Ricardo não cursou Letras, ou Artes, mas Engenharia Eletrotécnica. Sempre trabalhou como engenheiro, julgando-se, apenas, um leitor. Na primavera de 2009, o tédio do desemprego, que assombra hoje os portugueses, o levou a buscar a salvação na escrita. Escreveu, talvez, "para si", e não "para os outros", como, aliás, se escrevem as melhores coisas. Partiu de dois temas um tanto esgotados: o salazarismo, com sua brutalidade, e a Revolução dos Cravos de 1974, com suas contradições. Escreveu, contudo, um livro denso e comovente. Mais que isso: um romance tramado com perícia, que, a partir da história do pequeno Duarte, mesclada ao passado de seu pai e de seu avô, estampa um século decisivo na vida de Portugal.
Quando, em fins de 2011, recebeu a notícia de que ganhara o Prêmio Leya, João Ricardo sentiu-se imobilizado. Como se houvesse um erro de pessoa. Nada daquilo parecia, de fato, acontecer. A vida, com a escrita inesperada e o prêmio mais imprevisto ainda, era mais ficcional do que a própria ficção. Ele foi, de certo modo, o último a saber que é um escritor de grande talento. Nesse mês de dezembro, ao chegar à nona edição portuguesa, o livro lhe apresenta uma espécie de autorização final, indicando que agora já não é possível voltar atrás.
O jovem Duarte, como seu autor João Ricardo Pedro três nomes que, justapostos, parecem fora de lugar e, no entanto, assinalam uma personalidade ímpar , é um pianista precoce que, crescendo em plena primavera democrática, suporta o peso de seus antepassados, marcados pela repressão política e pela dor. Para a avó, Duarte parece, desde logo, "possuído por alguma coisa ruim". Não largava a grafonola de onde o som escorre através de uma saída que tem a forma de uma grande flor. A avó insiste: "O menino até perdeu a cor". O avô sugere que se chame um médico, pensa na anemia. Depois se corrige e, em defesa do neto, diz: "Não há bom médico, mas haverá bom pianista". A avó, perplexa: "Não sei se está mais maluco o neto, se o avô". Deslocada, na aparência, de seu verdadeiro lugar (assim como, talvez, João Ricardo sentisse a literatura dentro de si), a música se assemelha a uma doença.
Em torno da pequena vida de Duarte, toda a grande história do Portugal moderno se desenrola. Do avô, o doutor Augusto Mendes, ele guarda intensa intimidade com a fantasia. Também João Ricardo, fazendo da fantasia um novelo, dele borda sua escrita. Eventos e aparições inesperadas, como em um pesadelo, puxam as pernas do leitor. Em certo ponto do livro, surge até o então tenente-coronel António de Spínola que viria a ser o primeiro presidente da República após o 25 de Abril. No norte de Angola, asfixiado pelo calor, ele se aventura através da noite africana em um velho jipe. No banco traseiro, carrega o infeliz Joseph, um gato embalsamado. Sob o abrigo da escuridão, se envolve em uma pequena aventura mais secreta ainda.
Muito mais tarde, nos bancos da barbearia Playboy, Duarte meditará a respeito da estranha força que emana de seu barbeiro, Alcino. Imagina que, dentro dele, "em virtude de alguma patologia, se estava a criar, constantemente, uma quantidade de energia muito superior àquela de que o barbeiro Alcino precisava para fazer a sua simples vida de barbeiro". Talvez nesse ponto (posso considerar), o autor João Ricardo Pedro estivesse a pensar em si e no modo como, no interior de "um simples engenheiro", se agitam tantas histórias e tantos personagens. Agora é o adulto Duarte quem imagina o barbeiro Alcino em sua infância, "com apenas dez anos", uma péssima caligrafia, uma incapacidade para se vestir sozinho, um desastre nos jogos infantis. Sempre incapaz de retirar uma simples moeda da carteira sem que todas as outras caíssem no chão. Os pais só conseguem antever um futuro desastroso para o filho. Até que, um dia, o pai vislumbra um milagre: "O filho será barbeiro, o melhor barbeiro do salão Playboy".
Pensando em sua professora de música, Duarte se recorda que, a respeito dela e de suas famosas ancas, um amigo assim descreveu: "Parece que o mundo para. O tempo para. Nada mais interessa. Fica tudo suspenso". Em Duarte, a música provoca a mesma perturbação sensorial. Um dia, ao tocar um prelúdio em Si bemol menor, "caiu sobre o piano, fazendo lembrar uma marioneta à qual, de repente, tivessem sido cortados os fios". A professora o socorre, tenta reanimá-lo. No súbito desmaio, emoção artística, fraqueza e desejo sexual se misturam; mesmo desamparo e mesmo desmaio que as grandes ficções conseguem provocar. João Ricardo Pedro revira, assim, nossos preconceitos escolares a respeito da ficção que, na verdade, procede de regiões muito distantes do bem pensar e das belas letras. Os primeiros sinais, como no desmaio de Duarte, têm a aparência de uma ferida. Mas é ali que a beleza cresce.
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