Romance
A Festa da Insignificância
Milan Kundera. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho. Companhia das Letras, 136 págs., R$ 36.
Em um e-mail que recebo de meu amigo Ricardo Arnt, se destaca uma bela, mas alarmante frase de Rubem Alves: "A vida é um fruto saboroso que cresce na parede do abismo". A frase me esmurra e entorpece. Ela me pega em meio à leitura de A Festa da Insignificância, novo romance de Milan Kundera (Companhia das Letras). Uma delicada narrativa a respeito da fragilidade humana que não exclui, ao contrário, intensifica a beleza de nossa aventura. O que dói na frase de Alves é, do mesmo modo, a demonstração de que a beleza se alia à insignificância. É de muito pouco é de um abismo que arrancamos a vida.
Apesar da arrogância e presunção, não deixamos de ser pequenos. A vida nos dá ninharias e ainda que de nariz empinado enchemos o peito. É tudo, de fato, muito pouco, mas justamente por isso comovente e admirável. Assim também sentem os quatro amigos parisienses que protagonizam o romance de Kundera. Diz Ramon a DArdelo: "A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la". Mas, prossegue Ramon, não basta reconhecer a insignificância como alicerce da existência. O mais difícil vem depois: "É preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la". Porque só assim chegamos um pouco mais perto de nós mesmos.
Em busca das migalhas que compõem a viagem humana, o romance de Kundera traça um inesperado paralelo entre a Paris de nossos dias e a União Soviética do passado. A figura onipresente de Joseph Stalin circula pelo relato. Apesar de seu poder, Stalin se envolve em situações em que a insignificância o suplanta. As maiores demonstrações de força não vêm, necessariamente, das grandes brutalidades, mas das pequenas resistências. Lendo as memórias de Nikita Khruschóv, um perplexo Alain descobre em Stalin, em alguns momentos, a presença da ternura. "A palavra ternura não combina com a reputação de Stalin, ele é o Lúcifer do século", admite. Diante de seu auxiliar Mikhail Kalinin, e ainda que sem ceder aos apelos do poder, ele consegue provar de doces momentos de afeto. Originados não dos grandes atos, mas de pequenos sentimentos.
Já na velhice, o amigo sofre da próstata. Em espaços muito curtos, tem necessidade de ir ao mictório. Stalin o provoca, contando longas anedotas que Kalinin não ousa interromper. Nessas horas de sofreguidão, admira a resistência do amigo. "Sofrer para não molhar a cueca... Ser um mártir de sua higiene... Combater a urina que nasce, cresce, avança, que ameaça, ataca, mata...". Leitor das memórias, Alain se pergunta: "Existe um heroísmo mais prosaico e mais humano?" Talvez a batalha contra a urina tenha sido a grande guerra que Kalinin lutou. Do mais desprezível, surge o mais grandioso.
Stalin, o inflexível, gostava de contar uma tola história sobre vinte e quatro perdizes que, durante uma caçada, encontrara pousadas em uma árvore. Só carregava consigo doze balas e, por isso, matou apenas doze. Andou de volta os treze quilômetros até sua casa, pegou mais uma dúzia de balas, e voltou para matar as que restavam. Sempre que ouviam a história, seus companheiros bufavam de ódio. Como Stalin podia supor que acreditassem que as doze perdizes restantes permaneceram estáticas, na mesma posição, à sua espera? Ninguém entende que o ditador está brincando. Que ele os provoca. Levam a sério o insignificante e por isso sofrem. A experiência do poder é, também, a experiência da desprezível. É tudo muito pequeno.
Charles, outro amigo, fala sempre de uma peça de teatro que tem quase pronta, destinada às marionetes. Um dia, em um momento de sinceridade, ele desabafa a Alain: "Você entende, minha peça para marionetes é apenas uma brincadeira, uma tolice, eu não a escrevi, apenas a imagino, mas que posso fazer se nada mais me distrai..." No fim da peça que não consegue terminar até porque nunca a escreveu surgirá um anjo. Não sabe por quê. "No momento, sei apenas que no fim haverá um anjo". Comenta Alain que uma das poucas coisas que sabemos a respeito dos anjos é que são magros. Tudo muito pouco sonhos frágeis, detalhes inúteis , mas é dessas ilusões que o pequeno Charles se alimenta.
A experiência da insignificância pode vir dos sentimentos mais prosaicos. Caminhando pelas ruas de Paris, Alain descobre que nas mulheres não são as coxas, nem os seios que o atraem, mas o umbigo. Pergunta-se: "Como definir o erotismo de um homem (ou de uma época) que vê a sedução feminina concentrada no meio do corpo, no umbigo?" Mais uma vez, é no que, para a maioria dos homens, não passa de um detalhe que o personagem de Kundera se detém. Ali ele se concentra. Ali guarda sua frágil atenção. Ali o desejo lhe brota.
O arrebatamento pode vir de coisas tão inesperadas quanto a ameaça de morte. DArdelo vai ao médico, pois teme estar com câncer. O diagnóstico, para seu desafogo, é negativo. Na saída do consultório, atravessando aliviado o Jardim de Luxemburgo, ele cruza com Ramon. Conta de onde está vindo. "Que foi que o médico disse?", o amigo quer saber. Responde com uma única palavra, cheia de poder: "Câncer". Por que mentiu? Não sabe responder. Mas por que, também, diria a verdade? Não pode negar que seu câncer imaginário o alegra. Não ela, a doença, mas a pequena farsa que produz. Também de migalhas, de sobras do assombroso, é feita a imaginação.
Além do mais, a insignificância tem suas vantagens. Em outro momento, os amigos refletem sobre a inutilidade de ser brilhante. O sujeito brilhante supõe-se "sabe tudo". Mas diante dele, em vez de se aproximar, uma mulher logo se sente obrigada a entrar em competição. Ser brilhante é não só inútil, mas nocivo. Prossegue Ramon: "Ao passo que a insignificância a libera. A liberta das precauções. Não exige nenhuma presença de espírito. A torna despreocupada e, portanto, mais acessível". São muitas as vantagens do pequeno por isso, aceitar a insignificância, se a olhamos bem de perto, não é tão doloroso assim. Pode até trazer pequenas alegrias. É o fruto saboroso de que Rubem Alves nos fala.
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