Memória -Fico Besta Quando Me Entendem: Entrevistas com Hilda Hilst- Organização de Cristiano Diniz. Globo Livros/Biblioteca Azul, 236 págs., R$ 44,90| Foto:

Uma explosão sem limites do espírito, uma súbita expansão de nossas possibilidades humanas, provocaria um desastre pessoal. Ninguém suportaria. Não é por isso, contudo, que devemos nos conformar com a monotonia do que somos. O homem deseja sempre ir além de si, deseja se superar, mas para isso necessita de limites que – como um berço – o acolham em seu renascimento. Este limite, que propicia a metamorfose sem a destruição, é a arte. É a ficção.

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Pesco essas ideias em uma inesquecível entrevista que Hilda Hilst concedeu, no ano de 1980, ao crítico Leo Gilson Ribeiro. A conversa foi motivada pelo lançamento de uma das obras-primas da escritora, Tu Não Te Moves de Ti, que acabara de sair pela editora Cultura, de São Paulo. Ela agora ressurge em Fico Besta Quando Me Entendem (Editora Globo Livros, Biblioteca Azul), reunião de vinte entrevistas da escritora, organizada por Cristiano Diniz.

Além de ficcionista e poeta genial, Hilda Hilst foi uma severa pensadora da literatura. Sigo, como um espião, o diálogo entre os dois. A razão sozinha (expressa no personagem Tadeu) traz a ameaça do rotineiro e do postiço. O domínio da fantasia pura (Matamoros) leva ao delírio e pode nos incendiar. Não é uma questão de excluí-las, mas de incluir entre elas um terceiro elemento: a proporção (Axelrod).

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Argumenta Hilda: "Ambas as condições – a fantasia e a hiperlucidez – são mais do que a fragilidade humana consegue suportar: levam à loucura e à morte, inexoravelmente". A ficção é a expansão do espírito dosada (delimitada) por um terceiro elemento: a proporção. Podemos nos apegar à razão - mas com desconfiança. Podemos alçar voo na fantasia – mas protegidos por um limite, como uma redoma invisível. Hilda sempre se preocupou com a fragilidade humana, que talvez seja o tema central de sua escrita. "Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e que pode ser ele mesmo com uma liberdade total (&), eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?"

Aposta Hilda na noção do hermético, não como um muro intransponível, mas, seguindo o filósofo Soren Kierkegaard, como "o escudo que os homens usam para se fecharem dentro de si mesmos". O hermetismo – a fronteira, a pele, o limite – é uma defesa necessária do humano. Por isso, toda ficção é "hermética": ela "prende" uma parte do mundo em uma moldura de beleza. A ficção deixa, assim, de ser pura razão literária (saber), ou puro sonho (fantasia), para se tornar uma espécie de abrigo em que guardamos e alimentamos o que temos de mais precioso. O que? O que podemos ser e não somos.

A ficção, em consequência, é a confluência da expansão com o limite. É uma expansão que enquadra – é uma expansão que traça uma fronteira. Hilda sempre defendeu a ideia de que as máscaras são armas indispensáveis à salvação. Só mascarados (em "estado de ficção") conseguimos nos ultrapassar. Fascinada pelas ideias do Oriente, Hilda via a ficção como um espaço para o "satori", isto é, para a iluminação. A luz plena sem a proteção de um anteparo cega em vez de iluminar. Não traz, porém, promessa alguma de felicidade. Pergunta Hilda: "Pode ser feliz quem sabe que caminha para a morte?"

Chega Hilda assim ao problema da ética do ficcionista. "É válido você mostrar ao outro uma verdade que você não pode resolver para ele?". O que a leva a uma conclusão trágica: nem mesmo a ficção consegue nos salvar de nossa fragilidade. Escritores "cheios de si" são, na verdade, falsificadores. Estamos definitivamente divididos entre a razão, a fantasia e a proporção. Seus personagens, "Tadeu, Matamoros e Axelrod são as três possibilidades de uma só pessoa". Somos seres em potência. Para que nossa vida não se transforme em uma explosão, contudo, precisamos de freios. A arte é o mais eficaz desses freios: ela nos lança para o futuro, mas sem esquecer de nossos miseráveis limites do presente. "Einstein mostrou que, a grande distância, um presente é contemporâneo de um futuro". Ninguém se move de si – embora vastos abismos e densos espaços nos arrastem para a frente.

Em outra das mais importantes entrevistas de Fico Besta Quando Me Entendem, concedida a Caio Fernando Abreu em 1987, Hilda fala de sua "poética da coisa", inspirada em estudos de matemática pura. "Você fala coisa – mas o que é coisa? Coisa não é nada, coisa é tudo". Constata, então, que há dentro das pessoas, e dentro de si mesma, uma "grande desordem". Passa a buscar a raiz dessa desordem – e esbarra na "coisa". "Uma coisa acontece dentro de mim para eu me colocar numa determinada posição para escrever". A "coisa" talvez seja, mais que isso ou aquilo, um conflito. Uma posição de luta. "A literatura vem desse conflito entre a ordem que você quer e a desordem que você tem".

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Daí o interesse de Hilda Hilst pelo que chamava de "estados extremos". Estados de desordem absoluta, que incluem sempre o desejo de ordenar. "Dentro de você existe um tumulto, uma coisa túrbida (a "coisa"). Acho bonito ‘túrbido’ que é turvo, sombrio, mas também é túrgido". O escritor trabalha nessa zona de sombras. Ali você "não faz um catálogo, não esquematiza, você cede a pressões internas". Cede a estas pressões não para nelas se dissolver, mas para delas emergir. Diz Hilda: "Quando estou escrevendo não tenho segurança nenhuma. Mas, quando acabo de escrever, tenho completa segurança". Não que a desordem (insegurança) se esgote, mas ela encontra o seu leito. Ainda que seja um leito ameaçador, ainda que seja um leito de morte, ela encontra, enfim, seu lugar.

Conhecia Hilda, muito bem, os riscos envolvidos na ficção que (agora repito uma ideia que desenvolvi em meu blog, produzindo em alguns leitores certo mal-estar) não existe para divertir, mas para advertir. Talvez o leitor (meu leitor) tenha razão em se encolher. "Talvez o leitor não tenha uma couraça para enfrentar esse tipo de questionamento", Hilda me ajuda. Conhecia, em consequência, a necessidade vital de um centro. "Talvez minha literatura seja a procura do centro". Uma zona de segurança – uma ficção, um poema – em que o homem possa, enfim, ir além de si, e ainda assim sobreviver.