Ficções nos golpeiam, em lances súbitos, quando menos esperamos. Assim aconteceu comigo enquanto lia A Velocidade da Luz, romance do catalão Javier Cercas (Biblioteca Azul, tradução de Sérgio Molina). Antes de abrir o livro, li, em algum lugar, que ele trata dos sofrimentos de um veterano da Guerra do Vietnã, certo Rodney Falk. Trata, é verdade. Admito: o tema não me entusiasmou. Mas a literatura de Javier (1962) nunca avança na direção que esperamos. Rodney é, de fato, um personagem forte, que nos envolve em um manto de espinhos. Mas o golpe me veio de outro lugar.
Temos, sempre, uma maneira torta de ler e é através deste empenamento que entramos em um livro. Ele é muito sensível às circunstâncias. Vejam o meu caso. Li A Velocidade da Luz em Cuiabá, onde estive para uma palestra sobre Manoel de Barros. Às vezes, parava de ler o romance de Javier para reler poemas de Manoel. Esses saltos produzem interferências como os chiados dos velhos rádios. De alguma forma (retorcida, ela também), a voz de Manoel se infiltrou em minha leitura de Javier. Acho que o li como se fosse um poeta. Talvez ele seja um poeta.
À entrada no romance, uma frase da austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973), me alertava: "O mal, não os erros, perdura". Ingeborg empurra a dor para além das circunstâncias (ou erros), guardando-a em uma esfera indiferente ao homem e a seus atos que a poeta chama de mal. Mas não penso no mal, prefiro pensar no acaso que, de qualquer forma, rege nossas vidas sem se importar com o que dele pensamos. O acaso: tão insensível quanto o mal. Eis onde quero chegar: li o romance de Javiercomo um poema que faz pensar. Não pensar a respeito da guerra, mas (seguindo minha deformação pessoal) a respeito da literatura. É o que faz também Javier, como nas translações operadas pelas metáforas: trata de uma coisa, para falar de outra. Isso se chama inquietação.
Depois de conhecer o veterano Rodney, o narrador de A Velocidade da Luz lhe conta que está escrevendo um romance. Rodney lhe pergunta de que o livro trata. "Bom, na verdade ainda não sei ao certo", diz o rapaz, constrangido. Ouve, então, um comentário que o surpreende: "Gosto disso". Explica-se Rodney: "Se você soubesse de antemão, seria péssimo: só diria coisas que já sabe, que é o que todos sabemos". Prossegue em sua reflexão: "Se, ao contrário, você ainda não sabe o que quer dizer mas está louco o bastante, ou desesperado, ou com coragem suficiente para continuar escrevendo talvez acabe dizendo algo". Fala o veterano Rodney da indispensável dose de insensatez inerente a toda ficção. Mas não vou aqui fazer a apologia da loucura: o próprio Rodney é um exemplo de que ela indiferente e fria como o mal tanto pode nos alimentar, como pode aniquilar.
Depois de ver seu irmão Bob morrer durante os combates no Vietnã, Rodney começa a delirar. Desenvolve então uma abominável teoria a respeito da beleza da guerra. "É justamente essa verdade que todo mundo aqui conhece, mas ninguém quer admitir. Que tudo isso é belo: que a guerra é bela, que o combate é belo, que a morte é bela". A dor extrema leva Rodney a conceber uma repulsiva poesia da morte. Pior: está convencido de que, através dela, fala não de uma dor particular, mas de uma verdade universal. "O que me dá nojo não é que tudo isso seja verdade, e sim que ninguém diga essa verdade". Para ele, a verdade é sempre absurda, e por isso não a suportamos. Conclui: "A beleza da morte é uma verdade que ninguém diz porque soa falsa".
Tempos depois, dialogando com o jovem romancista que protagoniza o romance de Javier, um desalentado Rodney começa a entender que o problema, mais do que na palavra "morte", talvez esteja na palavra "tudo". Consegue dizer ao jovem amigo, então, que o conhecimento da verdade não é tudo até porque ninguém conhece tudo e que o que vale, no fim das contas, é perseguir os vestígios de nossa verdade particular. Explica ao rapaz: "O que quero dizer é que quem sabe aonde vai nunca chega a lugar nenhum, e que a gente só sabe o que quer dizer quando isso já foi dito". Contra a totalidade da guerra, que deseja impor o domínio do Tudo, o veterano Rodney vislumbra, agora, a beleza das pequenas coisas (ressoam os poemas de Manoel). Esta beleza se expressa nas vacilações do escritor, que nunca sabe ao certo em que direção caminha, e só por isso, porque não sabe tudo (aliás: porque não sabe quase nada) consegue escrever.
Diz Rodney ainda: "As histórias não existem. O que existe, sim, é quem as conta". Pois é isso que sinto durante a leitura do romance de Javier. Escondido sob os relatos de guerra, disfarçado sobre as reflexões a respeito do mal, entrevejo o próprio Javier, solitário e pequeno (Manoel), lutando para escrever seu livro. Como se eu estivesse em seu escritório, escondido atrás de uma cortina, vigiando seu combate com os manuscritos. Seguindo sua luta lenta, parcial, sua luta acidental (e cheia de acidentes), para enfim dizer. Escoltando-o em seu esforço para formular algo que não sabe o que é. Um homem que tenta dizer o que desconhece.
Outro momento que me interessa muito no romance de Javieré quando Rodney adverte o narrador não a respeito dos riscos do fracasso, mas a respeito dos riscos do sucesso. Este sim, o desejado sucesso, pode ser mortal. Na luta para se tornar um escritor, o maior risco é que você pode acabar conseguindo, lhe diz Rodney. Risco ainda maior: você pode ser bem-sucedido. E, nesse caso, você fugirá todo o tempo do lugar comum, porque se sentirá sempre obrigado a ser original e genial. "Só que as ideias não viram lugares-comuns por serem falsas, mas por serem verdadeiras", ele o adverte. Pequenas verdades, às vezes desprezíveis, indiferentes ao Tudo: delas a literatura se faz.
A literatura ainda agarrado ao romance de Javier, retomo os poemas de Manoel de Barros é o manejo do pequeno. A velocidade da luz faz isso: encurta as longas distâncias. Anula os grandes espaços. Espreme a arrogância do Tudo. E nos devolve (Javier nos entrega isso) nossa desajeitada e bela existência.
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