O que significa ler O Estrangeiro, o grande romance do argelino Albert Camus, em 2013 setenta e um anos após sua publicação em Paris, no ano de 1942? Algo muito forte persiste no protagonista Mersault, algo muito próximo de nós, que impede que dele nos afastemos. Ao contrário: que dele nos aproxima cada vez mais. Mersault matou um árabe sem saber por quê. Busca um sentido fora de si: talvez tenha cometido o crime só porque um sol forte o atordoava. Sem encontrar motivos externos, seu ato se esvazia. "Enlouquece".
Será mesmo? Ao assassinar o árabe, Mersault entende que destruiu o equilíbrio e a sensatez do mundo. Que absurdo e liberdade estão sempre perigosamente próximos. Ampara-se em uma explicação vazia: cometeu um ato impensado, impulsivo e sem sentido. Não suporta observar a si mesmo e a seus motivos secretos. Não suporta pensar na própria intolerância que, de tão arraigada e primitiva, já nem consegue ver. Salva-se, ou pensa que se salva, pela negação de si e da autoria de seu crime.
O romance que acaba de ganhar da editora Record uma nova edição, com prefácio do crítico Manuel da Costa Pinto começa no dia em que Mersault recebe a notícia da morte da mãe. "Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem". Estava em um asilo, a notícia chegou através de um frio telegrama. Ele pede dois dias de licença ao patrão. "A culpa não é minha", pensa em argumentar. Precisa ir ao enterro. Tranquiliza-se: "Depois do enterro, pelo contrário, será um caso encerrado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial". Vê a normalidade como a ausência de tensão. De vida.
Para Mersault, os fatos estão distantes dele e não lhe dizem respeito. Ele reage como qualquer homem deve reagir. Cumpre rituais. Adapta-se ao que dele se espera e só. Mersault pede que não abram o caixão da mãe, não quer vê-la morta. Prefere a assepsia. "Por quê?", alguém lhe pergunta. "Não sei" diz. Não é dono de si, apenas cumpre protocolos. Uma luz intensa devassa a sala em que está o cadáver. Mersault pensa, então, na pureza da morte, que promove uma espécie de grande assepsia. A sala é límpida, sem contrastes, sem sombras exatamente como ele vê a morte também. Durante o enterro, o sol derrete o asfalto. Não derrete só o asfalto: derrete a consciência. Esta claridade se torna insuportável, mas é sob ela que a tudo achata e a tudo iguala que Mersault deve viver.
De volta ao trabalho, Mersault encontra o patrão aborrecido. Pedira dois dias de folga em um fim de semana logo ganhara quatro dias e não dois. Insiste em pensar que, apesar de nos sentirmos sempre um pouco culpados, a culpa não é nossa. Ninguém é responsável por nada, pensa. Mersault não se sente responsável por seus atos. Conclui que, afinal, nada mudou com a morte da mãe. Nada muda pensa Mersault, e com isso justifica sua indiferença e tédio.
O tempo salta. Relaciona-se com um vizinho, Raymond Sintès, que é contraventor e está à margem das convenções e das regras e também não se sente responsável por isso. Mundo de autômatos: cada um age "como deve agir" e isso é tudo. Horror. Raymond não é mau, Mersault pensa, mas é nervoso. Depois tem uma briga com um árabe o mesmo que irá matar. "Como vê, não fui eu que provoquei. Ele que quis". Age por reflexos, responde a provocações, defende-se: nunca é o autor de seus atos, nunca assina a própria existência. Uma (triste) ideia bem contemporânea: a de que o autor morreu.
O sol pesado aumenta o sentimento de indiferença. Nada é nada. Tudo é tudo. Tanto faz. Uma mulher espancada chora e diz: "Ele me bateu. Ele é um cafetão". A mulher é ex-amante de Raymond. Ele se diz perseguido por um grupo de árabes. Enquanto isso, Mersault se relaciona com certa Marie. "À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia". Não existem sentimentos, mas posições. Não existem escolhas. O mundo é um tabuleiro no qual o destino, sonolento, joga sua sorte.
Mersault acaba por matar o árabe só porque seu amigo se sentia perseguido por ele. Matou-o porque, na praia, o árabe os olhava "como se fôssemos pedras ou árvores mortas". Basta um olhar e tudo se justifica. Uma impressão. Uma suposição. Mersault é preso. O promotor tenta encontrar um motivo que justifique seu ato horrendo, mas não o encontra. Nada. Busca-se sentido: não há sentido, existem apenas impulsos. Perseguem-se razões, não existem razões, mas só atos irracionais. Algo não posso deixar de pensar muito parecido com os tempos de hoje. Atualidade de Mersault. Atualidade de O Estrangeiro. Presença atordoante da figura de Albert Camus, o argelino, um escritor que ressuscita entre nós. E como está vivo!
Preso, Mersault entra em uma espécie de prostração salvadora, experimenta um sono leve e sem sonhos. Levado ao banco dos réus, percebe que os advogados se perdem na ausência de provas materiais. Passam a agir como psicólogos: põem-se a examinar seu caráter. Não encontram grande coisa também além do vazio. O próprio Mersault sem conseguir explicar os motivos de seu crime não chega a se sentir culpado. Sente-se carregado por uma situação que lhe escapa. Um boneco. Como se um destino mau e traiçoeiro o arrastasse pela Terra. Como se a vida fosse apenas irrealidade e estupidez. E tantas vezes não é?
Volto a pensar, pelo avesso, na sentença célebre de Jean-Paul Sartre: "Não importa o que os outros fazem da gente, mas o que a gente faz do que os outros fazem da gente". Para Mersault, a sentença de Sartre é impensável. Ele não é responsável por nada, limita-se a sofrer e a reagir. Ele não é dono de seus atos, não é dono de si. Ele não pensa. Haverá um "si"? Ou nos tornamos todos máquinas, ligados a fios e a satélites, a responder mecanicamente aos desejos de um grande deus inerte e inevitável?
Mersault não desconfia de si mesmo. Não tem dúvidas, não tem pensamentos, não tem nada em seu peito. Segue em frente, como um fantoche. Um embriagado. Um drogado. Um fanático que se limita a cumprir a lei que lhe é ditada. Um ventríloquo. Mersault é uma espécie de boneco humano alguém que chegou a um limite no qual a ideia de humanidade parece só um breve resto na memória.
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