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Surge um grande escritor: José Luiz Passos. Ainda não li seu primeiro romance, Nosso Grão Mais Fino (Alfaguara), de 2009, premiado com o Zaffari & Bourbon de literatura. Mas seu segundo livro, O Sonâmbulo Amador (mesma editora), não deixa margem para dúvidas. Aos 41 anos, o pernambucano Passos – que vive em Los Angeles, onde é professor na Universidade da Califórnia – se impõe, na tantas vezes tépida cena literária contemporânea, com uma escrita gritante e intransigente. Uma escrita que desloca seu leitor e o desarma. Que, como uma espada, o atravessa – e para que mais serve a literatura, senão para trespassar e afetar?

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Na semana passada, sonhei com um espelho negro e impotente, incapaz de refletir qualquer imagem. Apesar da face escura, eu me via com espantosa nitidez: o negrume do espelho me obrigava a olhar para dentro de mim. De uma forma secreta, meu sonho antecipou o romance que iria ler. O Sonâmbulo Amador me faz recordar de uma frase de Jean-Luc Godard que recebi de minha amiga V.: "Cinema não é sonho, nem realidade: é alguma coisa no meio". A literatura também. É do "meio", inconsistente, volátil, que ela trata. E não dos fins, com suas intimativas e veredictos.

Sobrecarregado de detalhes e de eventos cruzados, o romance de Passos, em vez de iluminar, cega. É turvo e denso o mundo de Jurandir, o protagonista do livro. E é por isso, principalmente por isso, que ele se parece tanto com nosso próprio mundo – um universo saturado de informações, em que nos tornamos prisioneiros dos "meios". Em vez de evocar Godard, Passos parte de uma ideia do poeta João Cabral: "Acordo fora de mim/ como há tempos não fazia". Também o sonambulismo é um estado intermediário, no qual o sujeito se vê "fora de si". Não habita o sono, nem o real, mas um espaço "entre".

O sonâmbulo age sob o comando de vozes alheias. Os dicionários o associam ao "disparatado, incongruente, desconexo". Sonambulismo procede de sono e, em consequência, da noite. Noite que é, também, intervalo e silêncio. É entre um espelho e uma escuridão que Passos escreve. É para esse mundo hesitante e trêmulo que ele nos transporta.

O Sonâmbulo Amador conta a história de Jurandir, um pequeno funcionário da indústria têxtil que, depois de um trauma, é internado em uma clínica para doentes mentais. Ali inicia uma viagem para além de si, e não de volta a si, que relata ao longo de quatro "cadernos" – as quatro partes do romance. A escrita é detalhista e hiperobjetiva. Evoca a estética áspera de Franz Kafka, na qual a objetividade, em vez de revelar, bloqueia o acesso ao real. Jurandir se conserva, todo o tempo, na posição de "observador". Essa posição já se configura em suas relações difíceis com a mulher, Heloísa, e com a "amiga" Minie.

O cotidiano – com suas miudezas, inutilidades, indefinições – arranca Jurandir de si mesmo. Ele tem uma vida banal, mas essa banalidade, que beira a vulgaridade, em vez de anestesiar, é a origem de sua dor. Sua vida, como a de todos nós, se caracteriza pela ausência de sentidos fixos. Uma vida em que tudo se equivale e na qual nada deve ser descartado, como assinala uma epígrafe atribuída a "um sorveteiro": "É preciso andar com um pouco de tudo". Todas as epígrafes do livro são atribuídas a personagens anônimos e comuns: uma telefonista, um renegado, um palhaço, um padre, um advogado. Lugares vazios – cadeiras vazias, como na brincadeira infantil – nos quais lutamos para nos sentar.

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A narrativa se desenrola em camadas, com grandes saltos no tempo e no espaço, sem que, no entanto, as fronteiras entre eles se fixem. O sonho, lentamente, se infiltra no real, que já não consegue esconder sua dívida primária para com o próprio sonho. O que estamos lendo: o relato de uma experiência, um trabalho de memória, ou a narrativa de um pesadelo? Nunca sabemos ao certo, já que as várias camadas, cosidas com perícia e sutileza, se contaminam. Parece um mundo assombroso. É, de fato, um mundo assombroso: mas, se pensarmos bem, não é assim – nesse estado de flutuação e derramamento – que experimentamos a realidade? Viver não é, no fim das contas, como nos relata o perplexo Jurandir, tentar unir partes que nunca se encaixam?

"Éramos tão próximos e ao mesmo tempo estávamos tão distantes um do outro", Jurandir diz, pensando em seu casamento com Heloisa. Logo depois, diz ainda: "Difícil é saber o sentido das coisas com muita exatidão". A constatação, que a princípio pode sugerir a impossibilidade de qualquer literatura, ao contrário, é sua condição primeira. Entre a ciência, a filosofia e as religiões, todas quase sempre "cheias de si", a literatura ocupa o difícil lugar do vazio. Veja-se Belavista, a clínica na qual Jurandir está internado. Nela, ele se defronta com figuras esquivas e difusas, como o doutor Ênio, sempre alheio à dor de seus pacientes, e sua auxiliar, Madame Góes, que busca "uma vida livre das amarras do corpo físico e psíquico". Não há conexão real entre eles, embora habitem um mesmo espaço e compartilhem o mesmo projeto. Do mesmo modo, o desaguar louco de eventos e de informações, em vez de clarear a escrita de Passos, a congestiona. Literatura do excesso, sua ficção é uma literatura sobre a impossibilidade contemporânea de domá-lo. Sim: o excesso é um monstro.

José Luiz Passos escreve como se ele mesmo fosse, sempre, seu único leitor. Como se já soubesse, sempre, do que se trata, e nada precisasse explicar. A vida de Jurandir, porém, se assemelha à confusão de fios que se contorcem em torno dos postes de luz. "A fiação dos postes, muito emaranhada, confundia quem quisesse puxar uma linha de energia ou separar a que ia da que vinha". Tanta luz, mas para quê? Diz Jurandir: "Estamos sempre sendo arremessados ao confronto com a dureza daquilo que melhor estaria se fosse simplesmente esquecido". É essa dor extrema – ter, sem possuir – que o autor nos faz encarar. Espelho inútil, onde nada se vê, além do impossível. Vitória da literatura que, nas mãos inspiradas de Passos, dá mais um passo naquela direção que sempre evitamos pisar.