A morte como espetáculo. A queda como celebração. O mundo contemporâneo transforma quase tudo em "evento". De uma festa de aniversário à decadência de um continente, tudo, absolutamente tudo, é imediatamente transformado em luxo, gozo e lucro. O conferencista Zeno Hintermeier protagonista de Degelo, romance do alemão Ilija Trojanow trabalha a bordo do navio cruzeiro Ms Hansen dando palestras sobre a agonia da Antártida. É só um dos atores, em meio a uma eficiente equipe de 78 atores tripulantes, que entretém 220 passageiros, com a exposição da agonia do planeta.
Certa noite, o Ms Hansen enfrenta uma tempestade. Enquanto os turistas que se definem pela eterna fome de ver se acomodam em uma sala aquecida para observar o choque das águas contra os vidros, "como se fosse um documentário premiado", Zeno, nunca livre da culpa, se debruça sozinho no parapeito da proa. Como um mártir, recebe os socos da tempestade de frente, "a maresia cuspindo no meu rosto, o vento chicoteia minha face". Expõe-se às chuvas como a um castigo, "pelo nosso pecado mortal civilizado que se renega o princípio da vida, pois só pode sobreviver quem almeja ascender por um vetor energético". A fúria da natureza é uma energia que ele ingere com volúpia. Purga-se, alimentando-se daquilo mesmo que o destrói e ao planeta que habita. Não transige do desejo de ser fiel às coisas tais quais elas são. As coisas do mundo são ásperas, e não o coquetel de gentilezas em que os eventos sociais as transformam. O planeta, apesar dos vidros duplos e das calefações, continua a ser selvagem.
No dia a dia, enquanto mantém um caso amoroso de ocasião com a garçonete Pauline, o infeliz Zeno cumpre seu papel de maquiador da dor. Seu triste papel de explicador do inexplicável. De mestre de cerimônias do degelo posto que, portanto, não comporta mestria alguma. A própria palavra adotada pelos promotores, "expedição", com suas ressonâncias cinematográficas e dramáticas, empresta à viagem a aparência (teatral) de um ato de resistência. Quando não há resistência alguma, há apenas o saborear da morte.
Pensa nas baleias, "a bela imagem falsa da eternidade", que os passageiros se deleitam em avistar. Nos miseráveis pinguins, vistos ainda como restos da grandeza natural, mas que um dia estarão mortos sob o sol. Nos imensos icebergs, troféus não da grandeza da Terra, mas da fragmentação dessa mesma grandeza. Enquanto isso, os turistas correm de um lado para o outro, sempre dispostos a qualquer sacrifício para sorver a natureza gelada, "como se ainda existisse ouro em pé na Terra do Fogo". Mr. Iceberg como Zeno é conhecido faz um grande esforço interior para sustentar o papel que lhe é destinado. O romance de Ilija Trojanow é o caderno de notas no qual ele registra "o que está para acontecer", isto é, os antecedentes do desastre.
Sempre que zarpa rumo ao sul, uma mesma dúvida lhe volta: viaja para o céu, ou para o inferno? Sabe que, mais uma vez, entra em um mundo no qual todos os conceitos se embaralham e as coisas raramente são o que parecem ser. Quando não está no bar a serviço, Pauline se empenha em embelezar a pequena cabine que os abriga. Há uma obsessão pela beleza, ainda que à custa da destruição. Em um de seus primeiros encontros com o comandante, ele lhe diz francamente: "Nunca vi tanto gelo movediço, nunca vi tanto verde". As belas geleiras flutuantes, assim como os campos que entre elas emergem, vigorosos e hipnóticos, são, na verdade, imagens contundentes do fim. Do degelo.
Reverentes à natureza que degela, os turistas se esforçam, sinceramente, para serem "bons". Mas a bondade não é uma embalagem vazia. Aqui me vem uma ideia de Jean-Claude Carrière, guardada em seu delicado Fragilidade, ensaio que publicou em 2006: "Corremos há muito tempo atrás de nossa própria bondade. Às vezes, acreditamos segurá-la, mas ela nos escapa na mesma hora. Ela é como o pedaço de sabão que o palhaço tenta pegar andando em volta de um picadeiro de circo". Resistente imagem porque antiga a do picadeiro: também à bordo do Ms Hansen, seguindo a lógica do espetáculo, a natureza se parece com um circo, cujos horrores os passageiros lutam para atenuar com a ilusão de que, pelo simples fato de visitarem a Antártida, se tornam sábios e bondosos.
Melhor seria deixar a terra quieta e vazia , entregue a seu silêncio primordial. A bordo do Hansen não existe nenhum sistema de sonorização, de modo que assim se simula o silêncio que os próprios passageiros vêm perturbar. Zeno, ao contrário, não quer nem a zoeira das escavações de petróleo, nem o silêncio reverencial: quer deixar a Antártida em paz. "Não quero pessoas nem petróleo derramado na Antártida, mas não quero tomar posse dela, eis a diferença, nenhuma parte dela postará o meu nome". Nem de devoradores, nem de salvadores, o que o continente gelado precisa é ser esquecido à sua própria existência. É deixar que ele simplesmente seja.
Certo dia, em uma das escalas do navio, Zeno agride o dono de um albergue: "Essa geleira morreu e você fica passeando por aqui animadamente. Suma, desapareça daqui. Você me dá nojo". Zeno sabe que nem a maldade, nem a bondade dos homens, nem suas piores intenções, tampouco as melhores salvarão a Antártida. Que o melhor que o homem pode fazer é se ausentar e permitir que o gelo siga seu destino. O degelo não é só a fragmentação das geleiras, é mais grave que isso: é a fragmentação das próprias esperanças humanas. Sejam de que tipo elas forem, ajoelhem-se diante de quais deuses preferirem, elas estarão sempre a machucar a natureza.
O melhor a fazer, conclui Zeno, é simplesmente não nomear a Antártida. Não devorá-la, nem salvá-la, mas deixá-la ser. As imagens das geleiras que ainda sobrevivem são a prova maior de que o planeta pode sobreviver com grandeza e beleza sem a existência humana. Somos muito menores do que pensamos ser. Temos muito menos importância do que acreditamos. Talvez seja essa arrogância que nos leva a profanar o planeta que devesse agora degelar.
O romance de Ilija Trojanow nos mostra que somos muito menores do que pensamos ser.
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