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Manifestantes tomam conta das ruas do país. Há um frenesi incompreensível, uma agitação dispersa – um alagamento – que recusa qualquer nome. O que pensar? A poesia não existe para espelhar, mas para espetar o real. Para sacudi-lo com o risco do nome. É bom ouvir, então, o que um jovem poeta – Bruna Beber – tem a dizer. Escutar com serenidade e desconfiança, pois é um erro confundir poesia com pregação. Os poemas de Bruna são anteriores aos acontecimentos – a poesia vem sempre antes. Devem ser lidos, no máximo, como vaticínios. Limito-me a ouvi-los como alguém que, no meio de uma floresta escura, segue o canto de um pássaro.

Penso no pouco, tão pouco, que consigo ouvir do que Bruna me diz. Ouço o que ela me diz? Não: ouço o que dele posso receber. Leio Rua da Padaria (Record), seu novo livro de poemas. Ela mesma logo me alerta: "Tudo tem barulho de mar". O barulho do mar se duplica na enceradeira, no espirro, no bombardeio, no chiclete, nas miudezas. Inunda (e iguala) as coisas do cotidiano. Adverte-nos Bruna, antes que nos entreguemos à orgia da repetição: "e dentro/ de cada mar um ralo/ entupido de cabelos". O ralo entupido é um obstáculo para a descida ao profundo. É uma condenação à superfície da água parada. Um ralo entupido de cabelos tira toda a perspectiva do mar. Ele o transforma só em uma casca.

Na tecnologia de hoje (luz sem fundo), navegamos sem direção. Na verdade: boiamos, levados para cá e para lá, sem a chance de um mergulho. A poesia é esta chance. As ruas também têm seus subterrâneos e abismos. Por isso, a poeta inveja as gaivotas, "um mirante/ em cada olho". Livres, "debaixo da luz, inteira do céu", elas observam o mar desde muito alto. Elas o observam em abismo. Com seus desenhos e rasantes, nele traçam a profundidade. "Felizes são/ as gaivotas", afirma Bruna. Enquanto isso nós, humanos, presos ao espelho rasante do absoluto, nos vemos naqueles que "tristes, porém doces/ inventaram o bolero". Lamentamos e boiamos. Será viver?

Retidos na superfície da rua, somos "a velha passeando com o cachorro/ os prédios assistem aos ônibus/ indo para o mesmo lugar". Rotas, roteiros, rotinas: se não perfuramos a realidade, ficamos como os ônibus circulares, ou como os ratos presos em suas gaiolas. Contra o eterno retorno do mesmo, a poesia se ergue. A "rua da padaria" que serve de título a Bruna Beber não é "qualquer rua", mas uma rua particular. Na rotina do automático – uma mensagem no Facebook e clique –, nos tornamos indiferentes. Aquele que nem se importa com "quanto falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu". No brilho da aparência, mirando o grande espelho, somos todos e, ao mesmo tempo, nenhum.

A poesia não é o lugar do nenhum. Tampouco é o lugar do algum. É o luar do Um. Para chegar ao Um (para "cair em si"), é preciso, porém, romper com os tiques, com as convocações automáticas, com os impulsos. Entender que o tique é um "exercício de ilusão". Tiques, automatismos, ideias cegas apagam o real, ou o encobrem. Tiques nos afastam das pequenas coisas que são, por excelência, o objeto da vida. "Um sentimento/ zinho sem nome/ e por isso/ tremendo/ nem por isso/ temido": eis a poesia. Tão pequeno que resiste ao nome. Tão pequeno que logo surge "a vontade/ irresistível/ de nomeá-lo". Como chamar essas coisas tão pequenas que a poesia tem como objeto? "Chamaremos/ de aquilo/ que sobra/ aquilo que falta". Resto ou ausência, elas surgem sempre além do grande espelho das convicções.

Contra a violência das ruas, preferir a violência da escrita, que corta, sangra, exclui, e só assim faz. A poesia é um veículo longo, que nos leva a "morder e quebrar/ os dentes/ mastigá-los/ fazê-los pó/ melhor ainda/ engolir o pó". Tudo isso é melhor "do que levar/ encolhido/ um sentimento". A poesia alonga, expande, multiplica. Nos poemas de Bruna Beber, ela sacoleja, como um ônibus. Ela nos carrega, com ela avançamos. "Estou sempre indo ao seu encontro/ chego de costas pra você achar que estou indo embora/ saio de frente pra você achar que estou chegando". É só porque se alimenta de incertezas que um poema se escreve. "Estou sempre perdido indo ao seu encontro".

Lembra-nos Bruna que, para ir em frente, é preciso antes esboçar um caminho. "A corda da distância/ tem tamanho infinito/ inventemos pois/ o pé". Inventar o pé é inventar a medida. A proporção. Tudo isso se faz delicadamente, em um estado de mutismo. Em vez de esbravejar, o poeta anota (silencioso) em seus caderninhos. Histórias se fazem em silêncio. Lembro de Marianne Moore: "em silêncio não, em contenção". É ao se conter na margem do papel – é ao se encarcerar na própria palavra – que o poeta se faz poeta. Que o homem comum, mesmo que poeta não seja, roça o centro das coisas. Na ponta do trampolim, o nadador se contém (se congela) preparando-se para o mergulho. A linha de salto é só um fio, mas nada além dela o interessa. Nada mais existe.

A parábola – a alegoria, a poesia –, diz ainda Bruna Beber, não passa de uma esquina. Nela, algo se vira e revira: algo se transforma. Olhamos de novo, e já passou, mas esteve ali. A poesia é uma sombra que, de tão delicada, não se pode pegar. Não se deixa pegar. "Você não tem nada/ mas tem brisa", escreve Bruna. "A brisa faz/ carinho". E arremata: "em comum você/ e o mar só tem/ a brisa". Mas em um mar mergulhamos, enquanto que em um espelho luminoso não.

Com a delicadeza das coisas banais, a poesia de Bruna rompe a placidez das certezas. "Vou rasgar/ tua cara/ pra abrir/ teu coração". Um coração aberto prefere, à gritaria, a companhia. Um coração aberto, ainda assim, bate em surdina. Bate com delicadeza. Está, sempre, por um fio – e tem consciência da linha tênue que lhe serve de corda. Rua da padaria é um livro sobre as pequenas coisas que só têm significado para quem as vive. A padaria: qual padaria? A minha, a sua, a de Bruna. Ali onde um nome é só um murmúrio que esboça a intimidade. A rua de que Bruna Beber nos fala é íntima, é secreta, não é qualquer rua. Só a vê quem a vive. Só consegue tomá-la quem, em vez do grito, usa da escuta e do perdão.

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