Reedição
Poesia Completa
Manoel de Barros. Leya, 496 págs., R$ 45,99.
Tenho comigo a nova edição da Poesia Completa, de Manoel de Barros (Leya). Ela chega ao mercado trazendo um poema inédito, "A Turma", de 2013, e acompanhada de um box de luxo batizado A Biblioteca de Manoel, com todos os seus 18 livros individuais. É uma boa oportunidade para refletir a respeito de um estigma que pesa sobre Manoel e sua poesia: o de que ele é um poeta que só se repete e, mais ainda, de que confunde poesia com jogo infantil.
O interessante é que as duas restrições não deixam de ser verdadeiras. A poesia de Manoel de Barros tem, de fato, uma marca inconfundível que se derrama sobre toda a obra e que podemos chamar, imitando-o, de "manoelês archaico". Seus versos são inconfundíveis assim como é inconfundível uma imagem do monte Everest, da baía de Guanabara, ou do Grand Canyon. Há uma marca original um timbre que não permite que ninguém dela se aposse, ou imite, sem cair na desgraça da cópia fraudulenta. Algo que vem do fundamento, que é o próprio fundamento, em uma poesia que não tem pudor algum em (mesmo elegante e doce) se desnudar.
Mas Manoel não escreve para copiar a natureza, e sim para reinventá-la. Seu poema inédito, "A Turma", foi incorporado ao fecho de um livro antigo, os Escritos em Verbal de Ave, que ele apresenta como uma "desbiografia" de seu amigo Bernardo. O poeta não se interessa nem pelo natural, nem pelo verdadeiro. Está mais empenhado em distorcer essas duas noções, ultrapassando-as para que, enfim, a invenção se imponha como única norma. "Videntes/ não ocupam o olho/ para ver mas para transver", ele nos diz em um poema antigo.
No inédito "A Turma", Manoel faz uma pergunta insistente a respeito do ato poético, que sintetiza assim: "Ele queria mudar a Natureza?" E responde de modo veemente: "Mas o que nós queríamos é que a nossa/ palavra poemasse". Arrancar das palavras toda relação de utilidade, todo conteúdo, todo significado. Ficar com a palavra pura como um objeto primário. Para, aí sim, colocá-la em outro lugar, inverter sua posição, experimentar novos usos. "A gente queria encontrar a raiz das/ palavras", escreve. Valorizar o mal comportamento, obedecer às desordens infantis; em vez de imitar a natureza, "poemar", o que é uma maneira de revirá-la em busca de seu fundo vazio.
Daí da lista de "desobjetos" de Bernardo constarem coisas como um "martelo de pregar água", um "guindaste de levantar vento" e um "alicate cremoso". Para que servem? Para nada. O nada na estética radical de Manoel é a matéria da poesia. Gosta de lembrar do francês Gustave Flaubert que, numa carta de 1852, disse que gostaria de fazer um livro sobre nada. Mas o nada de Flaubert ainda não é o nada de Manoel. "Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustenta pelo estilo", o poeta nos lembra. Já o seu nada é diferente: "O nada de meu livro é nada mesmo. (...) O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo".
Tal atitude pode parecer ora soberba, ora desumana. Contudo, a delicadeza de Manoel é indiscutível. E, por detrás de seus jogos verbais, é o homem com seu grande vazio que se ergue e se presentifica. Releio "A Turma": é impressionante tanta lucidez infantil em um homem de idade tão avançada. "Nasci para administrar o à toa, o em vão, o inútil", escreveu certa vez. Será Manoel indiferente aos significados, ou atento à criação de novos significados? Estará Manoel só brincando ou, ao contrário, jogando um jogo mortal que só adultos ousados se permitem experimentar?
É uma poesia indiferente à lógica, e interessada nas verdades profundas, que não costumam ter lógica alguma. É um homem que mistura as espécies naturais quando fala, por exemplo, que o dia está "frondoso em borboletas". Não se interessa pela verdade, mas pelo que ela esconde de invenção e de provocação. "Poesia é a infância da língua", já escreveu também. Poesia da origem, seus versos apontam para a origem da poesia. Que começa como um sopro, um tombo, um engano. Que não tem lugar ou hora para nascer, precisando só de um poeta que esteja disposto a lhe oferecer o corpo.
Sua poesia mistura pertencimentos: as palavras gorjeiam (mas não são os pássaros?). A ordem da língua é quebrada: elas não gorjeiam "para ele", mas "nele" "elas me gorjeiam", escreve. À entrada de seu grande livro, anuncia ainda que tem Aristóteles como mestre e que se baseia em seus "impossíveis verossímeis". Em resumo: Manoel de Barros faz poesia para inventar o impossível. E, com isso, alarga o mundo, repuxa as fronteiras do humano, transforma a alma em elástico. Em vez da coisificação existencialista do mundo, na poesia de Manoel são as coisas que falam. A cada verso, afirma sua diferença e sua solidão, mostrando o poeta como um menino solitário. "No recreio havia um menino que não brincava/ com outros meninos/ O padre teve um brilho de descobrimento nos olhos/ - POETA!".
É como diz no Livro sobre Nada: "O menino de ontem me plange". Menino que tem outra versão a respeito da verdade: "Tudo o que não invento é falso". Menino e poeta que, portanto, incomodam com sua solidão radical, excluindo-se dos grupos poéticos, das escolas e dos cânones. Excluindo-se do sensato e do previsível. Não há outra maneira de ler Manoel de Barros que não seja entregando-se complemente sem ressalvas, sem suspeitas, sem interrogações ao magma de seus poemas. É preciso "ser" Manoel de Barros para ler Manoel de Barros. Colocar-se neste lugar maravilhoso em que a palavra se livra de toda incumbência e se torna só um jogo. Isso assusta. Isso não parece poesia. Isso incomoda nossa necessidade de significações e de explicações. Isso nos torna leves livres do peso do mundo podemos enfim, como as crianças, nos limitar a jogar com ele.
Um verso de Manoel resume: "Com pedaços de mim eu monto um ser atônito". Um ser que prefere as linhas tortas, como Deus. Menino, ele sonhava em ter uma perna mais curta, para que todos o olhassem. Não teve a perna mais curta, teve a poesia. Uns o olham de banda. Outros, a maioria, se ilumina. Todos o olham. Parece loucura: "Trabalho arduamente para fazer o desnecessário", Manoel nos diz.
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