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Livro: Estado Crítico- Régis Bonvicino. Hedra, 114 págs. R$ 34. Poesia. |
Livro: Estado Crítico- Régis Bonvicino. Hedra, 114 págs. R$ 34. Poesia.| Foto:

Um poema é uma selva. Atravesso um poema, faço minha expedição. Sou um leitor. Não há um destino certo, tampouco existem placas de sinalização, acostamentos, ou mirantes. É tudo disperso e indefinido: a poesia não é o lugar da explicação. O poema que hoje percorro é "Hong Kong", de Régis Bonvicino, que colhi em Estado Crítico (editora Hedra). Trafegava pelo livro em intensa conexão, arrastado pelos versos tentadores de Régis. Uma poesia que nos coloca frente a frente ao contemporâneo, que o esfrega em nossa cara. "Isto é o mundo!", ela nos diz. "Não desviem os olhos!" E eis que esbarrei em "Hong Kong", poema emblemático, em cujas vigas eu permaneço, como que alçado numa plataforma. Nela levanto meu precário acampamento de leitor. Sobre este poema que se ergue à minha frente, ponho-me a pensar.

Na Hong Kong de Régis Bonvicino (como nas metrópoles de nosso tempo), o mundo se descortina em uma atitude inóspita. Estarei no terraço do antigo edifício do Bank of China, "à noite"? Sim, estamos na noite profunda, noite clara, porém, devastada pelas luzes do império e dos negócios. Contudo, a indefinição permanece: "É uma cortina de fog/ É o novo Bank of China/ acima da linha de luzes, pontiagudo/ É um míssil de Beijing". Acima do amparo das luzes, a ameaça. O poder que se ostenta e se impõe. E sob esse poder, por ele dominado, o mundo se embaralha.

"É o monge taoísta a caráter pisando firme/ no tapete vermelho do Regency Hyatt". Dissolvido na grande cadeia, o monge perde o espírito harmônico que define o Tao. A busca de uma energia que sustente o equilíbrio (Tao) se esparrama sobre os tapetes do grande hall da banalidade. Não adianta pisar firme: ali embaixo borbulha um pântano: o do contemporâneo, com seus vazamentos, suas poças superficiais, suas luzes enganosas. O poeta vê "um mendigo que se automutila", "um garoto mordendo um cigarro", "uma gravata pendurada num cabide". Sangue e clichê se misturam. Ao fundo, para tornar a atmosfera ainda mais enigmática, "Jobim e Astrud Gilberto num alto-falante". O mundo desordenado e incongruente: um mundo (o nosso) em que tudo resvala, como um menino em sua prancha de skate.

Ao poeta, cabe pisar esse chão, sem fugir, sem se esquivar e sem negar. É o que faz Régis, escrevendo uma poesia movida, antes de tudo, pela coragem. Um mundo duro de aceitar. Cenas, como navalhadas, rasgam o caminho à sua frente – e também meu percurso solitário de leitor. "É uma droga que emagrece macacos obesos/ É o design vanguardista da garrafa de Jasmine tea/ Cai o prédio velho do mercado de Tung Choi/ Street, espinafre d’água". No bojo do grande navio do contemporâneo, guarda-se a loucura dos elementos; e eles se misturam, se anulam, se substituem de maneira fácil e enganadora. Design e despojos: tudo igual. Ao poeta (a Régis) cabe pisar este solo deslizante, amparando-se como pode na delicadeza das palavras. E é o que Régis – exímio manobrista – faz. Ali, em torno do grande caos, onde o Tao já não pode se impor, ele escreve.

A agitação das imagens que transpassam a alma do poeta não cessa. "É um chinês desdentado numa aquarela/ é a careca do poeta Yu Jian produzindo energia limpa e renovável/ no saguão de um hotel/ É o ataque dos Budas de neon". O chinês sem dentes exibe sua feiúra. Novamente o saguão de um hotel – marca do transitório – para acolher (ou matar?) a diferença da poesia que um poeta (Yu Jian) escreve. Budas de néon: pode haver imagem mais devastadora do mundo precocemente senil em que vivemos? Senil porque, antes de apresentar, antes de dar a ver, ele já mata. Porque tira do mundo o seu espírito e exige as ossadas como troféu.

A imagem talvez mais terrível vem em seguida: "É um túmulo com terraço e vista para o mar". Régis nos fala, assim, das inutilidades que, na barafunda do néon, parecem tão úteis. O que a morte pode ver? O que pode divisar? Sobra a paisagem (mundo), inútil - embora vivo e forte - para o dragão que o devora. Assim vai a poesia cumprindo seu papel de investigação do ser. Conectar imagens, colar o impossível, ligar discrepâncias: eis o que faz o poeta quando ele tem – como Régis – a coragem extrema de meter as mãos no caldeirão do real. Ali onde o presente ferve, ele mergulha. Ali onde o sentido se dissolve, ele se agarra às palavras. Ali onde o mundo se perde de si mesmo, ele, poeta, aponta caminhos, rascunha um futuro ou, pelo menos, amansa o presente.

Um mundo no qual o sagrado e o banal se misturam. "É Tin Chan Temple/ um Buda gigante/ geladeira de coca-colas no abdome". Espírito e publicidade misturados. A publicidade, é claro, vence, isto é, vende. Com o avançar do poema, a realidade se torna cada vez mais embaralhada e mais indecifrável. Mais ligeira e trapaceira. Falta uma parte do mundo. Uma metade – o que deixa o real oco. Há um vazio, que nada representa além do vazio mesmo. Escreve Régis: "A lua cheia, pela metade/ É uma nuvem sobre o mar/ uma pantera/ O sol mais tarde". O sol – a claridade – só virá depois: mas quando?

O poema de Régis abre uma visão frontal, e sem curativos, da realidade contemporânea. Pessimista? Eu não sei. Como se ele nos dissesse: "O mundo é assim, então nos viremos com isso". A poesia serve como lupa, que aumenta a realidade a um ponto extremo, no qual ela quase explode. O poema se torna um voo supersônico através do presente. Poema inútil? Será mesmo a poesia inútil, como tantos hoje repetem? Sempre suspeito disso. De fato, a poesia não faz parte da cadeia produtiva, não gera efeitos práticos, não fertiliza a produção de bens de consumo, nem tem veleidades políticas. Mas para muitas coisas a poesia ainda serve sim. A principal – e o poema de Régis nos deixa cara a cara com isso: ela nos acorda.

Como o título do livro já anuncia, é um mundo em "estado crítico", no qual a realidade parece ter se expandido muito além do que somos capazes de suportar. O mundo cresceu demais – é um bolo inchado e confeitado, prestes a explodir. Não damos conta dele e, por isso, precisamos dos poetas para trabalhar em nosso lugar. Não é exagero dizer que, com seu poema, Régis Bonvicino nos salva um pouco.

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