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Livro

Alabardas, Alarbardas, Espingardas, Espingardas

José Saramago. Cia. das Letras. 112 págs. R$ 27,50. Romance.

Toda ficção tem seus pontos de atrito. Núcleos explosivos, eles, em geral, desvelam grandes impasses. Resumem, assim, aqueles impulsos essenciais que se derramam ao longo de todo o relato. Já no primeiro capítulo de Alabardas, Alarbardas, Espingardas, Espingardas, último e inacabado romance de José Saramago (Cia. das Letras, ilustrações de Gunter Grass), encontro aquele ponto de convergência — espécie de caroço — que resume o próprio livro. Funcionário de uma indústria de armamentos, a Belona S/A, o protagonista Artur Paz Semedo orgulha-se de seu trabalho. Esse orgulho é, ao mesmo tempo, a causa de sua solidão. Depois de um longo casamento, sua mulher Felícia, uma militante pacifista, não suporta a contradição que traz em sua doméstica, e o abandona.

Apaixonado pela perfeição das armas que ajuda a produzir, Semedo é também um admirador dos filmes de guerra. Um dia, assiste a A Esperança, obra sobre a guerra civil espanhola, rodada no fim dos anos 1930 e inspirada no romance homônimo de André Malraux. Não é um entusiasta da leitura, mas, estimulado pelo filme, decide ler o romance. "Mal sabia ele, pobre coitado, o que o esperava". Uma brevíssima passagem o detém. "O comissário da nova companhia pôs-se de pé: ‘Aos operários fuzilados em Milão por terem sabotado obuses, hurra’". Ali, onde não esperava, Semedo prova o gosto áspero do paradoxo. Primeiro é invadido por um incontrolável sentimento de piedade pelos sabotadores fuzilados. Ao mesmo tempo, é devastado pela repulsa à sabotagem, expressa em uma frase que diz sem pensar: "Não se podem queixar, tiveram o que procuraram, quem semeia ventos colhe furacões". A piedade difusa se transmuta em irritação. É um funcionário "tão afeiçoado a instrumentos bélicos que não podia suportar a simples idéia de que alguém se atrevesse a sabotá-los".

A cisão vem à tona, áspera ferida, rasgando a precária estabilidade da vida de Artur Semedo. Nesse momento, o personagem de José Saramago se aproxima do humano. Toma a sabotagem como uma ofensa pessoal. Isso se mistura à misericórdia pelos operários. Semedo descobre, nesse momento, que tem dois corações, e pior: que eles, em vez de se complementarem, se negam e repudiam. Também o leitor de Saramago — eu mesmo — nesse momento se vê diante de um impasse. Já não pode se identificar com o personagem, porque não sabe, ao certo, quem ele é. Não pode negá-lo — porque, provavelmente, com ele divide sentimentos parecidos. Mas não pode nele se espelhar — porque a imagem em que se reflete vem despedaçada.

"O sentir humano é uma espécie de caleidoscópio instável", relata Saramago. "A realidade do que aconteceu na cabeça de Artur Paz Semedo foi diferente, a comiseração, a falta de piedade e a irritação, ainda que centradas em si mesmas, tinham aparecido misturadas". Alguém se torna humano não quando corresponde, ponto a ponto, aos modelos "naturais", mas, ao contrário, quando deles se desvia. O caleidoscópio — artefato óptico em que o jogo de imagens se produz por reflexo — resume, de modo preciso, mas ameaçador, a mente humana. A turbulência dos sentimentos o engolfa. "Foram eles que levaram Artur Paz Semedo a não continuar a ler o livro de Malraux". De nada serve ler ingenuamente. Há sempre o momento em que tropeçamos em um impasse. Momento em que toda esperança de explicação e ordem se desfaz.

O próprio Semedo se encarrega de telefonar para a mulher para admitir que está "com o espírito confuso". Recorda, então, que, já perto do fim do livro de Malraux, há uma referência a uns operários que foram fuzilados em Milão por terem sabotado obuses. Comenta Felícia que foi um ato justo, "já que estavam contra a guerra". Com o interior aos frangalhos, Semedo, ainda assim, reage. A mulher reclama de sua "falsa virtude ofendida". Ele rebate dizendo que "o que faço é defender o meu trabalho". Não é fácil para um homem admitir que faz aquilo que, embora se orgulhe, também o repugna. Semero está em um impasse: é contra o fuzilamento, mas também contra a sabotagem. A incoerência de seus pensamentos o asfixia.

Livros são iscas — e, nesse ponto, evocam a realidade, que sempre nos encosta contra a parede. Lembro-me do dia em que Saramago me acompanhou em um passeio pelo parque dos vulcões de Timanfaya, no coração da ilha de Lanzarote, Canárias, onde vivia. O parque, com seu terreno ressecado e cinzento, evoca a face da Lua. Mas não de um satélite morto como o nosso, e sim de uma Lua viva, sobre a qual ardem milhares de pequenos vulcões. Turistas usam algumas dessas bocas de fogo para assar seus churrascos. O ato, banal, não serve para esconder o horror que nelas se guarda. Saramago me disse: "o sentimento mais forte nesse parque é a estranheza". De fato, a mistura de relaxamento e medo, de acolhimento e ataque, essa incompatibilidade de sensações, é algo inesquecível. Nela o parque se afirma. Ali o real expõe, enfim, sua ferida. Da brutalidade — uma terra em fogo — tira-se não o horror, mas o prazer. E, contudo, a ilha queima e lateja. Aquilo não é só uma ficção.

Também as narrativas, como os escritores, chegam a um momento em que o impasse formal se cristaliza em subjetividade. Em uma antiga entrevista a Ángel Crespo, Saramago nos diz: "O que ocorre é que, talvez, há um momento chave no qual o sujeito se aceita a si mesmo". E mais para frente, recordando o momento em que se encontrou como escritor: "Eu me dei conta de que o melhor para mim era ser o que era. Foi quando aceitei meus limites, todos os meus limites, e quando compreendi que a única solução que me restava era me aprofundar no espaço de meus limites, e não pensar em ir além". O ser é não uma soma — uma síntese —, mas, ao contrário, a cristalização de um paradoxo. Não se trata, portanto, de um momento de solução — talvez, ao contrário, seja um momento de dissolução. Decomposição de ideais e de projetos de perfeição. É um momento que também o leitor, desamparado, experimenta. Nele, os sentimentos, em vez de clarear, se obscurecem. As partes, em vez de se completarem, entram em conflito. E o personagem, enfim, deixa de ser uma síntese morta para se tornar vivo.

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