| Foto:

Livro

Hanói

Adriana Lisboa. Alfaguara. 168 págs. R$ 39,90. Romance.

CARREGANDO :)
Veja também
  • Autoria ou afasia?
  • A fome de palavras
  • A defesa da desordem

Na primeira página de Hanói (Alfaguara), novo romance de Adriana Lisboa, um médico se distrai revirando entre os dedos um pequeno elefante de pedra verde, enquanto anuncia a um jovem paciente, o vendedor David, que ele tem um câncer incurável na cabeça e só lhe restam poucos meses de vida. O elefante de jade não funciona para o médico só como um escudo que o protege do silêncio agudo do rapaz, "já que as palavras de David pareciam estar enfiadas dentro de alguma gaveta". É conhecida a preferência desses animais pela morte distante e solitária. A pequena estátua, portanto, é também uma metáfora que anuncia o destino que David traçará, a partir do diagnóstico, para si mesmo. Uma espécie de Terra Prometida, que se chamará Hanói.

Publicidade

Decide não dramatizar a condição de doente terminal. "Estava claro que o mundo passava ao largo do drama. As pessoas é que empurravam adjetivos para dentro das coisas". O câncer tira os adjetivos do mundo e o entulha com substantivos brutais. Não imagina, porém, que, empurrado pela notícia da morte próxima, ele será tomado pela ideia fixa de um destino. Sua posição me leva a lembrar de uma frase que ouvi do escritor Herbert Daniel (1946-1992) poucos dias depois que ele recebeu um diagnóstico de aids – doença que, enfim, o matou. "Não importa saber se há vida depois da morte, o que importa é saber se há vida antes da morte".

A frase de Daniel poderia ser repetida por David. Ele não chega a dizê-la, mas ele a vive. O destino coloca em seu caminho a vital Alex, uma descendente de vietnamitas, que trabalha no caixa do um pequeno mercado de Chicago. Seu chefe é um ex-monge budista, um certo Trung. Sempre que pensa nos velhos vietnamitas e em seus traumas de guerra, vem à mente de Alex uma estranha palavra, um conceito emprestado da física, "desde sempre uma de suas matérias preferidas". A estranha palavra é "resiliência". O Houaiss a define como a "propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica". No sentido figurado, ela fala da adaptação à má sorte, ou às mudanças imprevistas. Não imagina a garota que a palavra aponta, também, para o esforço que David empreende. Como tirar da morte um pedaço de vida? Ou – seguindo a pista de Daniel – como viver antes da morte?

A mãe de Alex, Huong, e sua avó, Linh, imitando os elefantes, retiraram-se há algum tempo para uma pequena cidade a cinco horas de Chicago. David, porém, não quer abandonar o mundo: ele busca, ao contrário, um "plano de ação" para permanecer vivo. Não a salvação da morte, mas do tempo que a antecede. Doa todos os seus bens, a começar por um aquário, e guarda, além de poucas roupas, apenas seu amado trompete. Teme que, como acontece com os doentes graves, venha a se esquecer do mundo e se centrar apenas em si mesmo. Não: ele quer o mundo, mais do que nunca ele o deseja. Mas o que exatamente deseja? Precisa de um plano, isto é, de um destino, que lhe será dado por Alex: Hanói. Nunca pensou em visitar a capital do Vietn㠖 mas é justamente este "nunca pensar" que torna a escolha mais convincente. Não pode imaginar que, num futuro próximo, Alex a viverá por ele.

É esfumaçada a atmosfera que envolve o belo romance de Adriana Lisboa. Medita David: a normalidade é fosca, exatamente como o céu de Chicago, mas agora ele precisa de um ponto de luz. Recusa o papel de doente: "Viraria um objeto com coisas a dizer, às quais ninguém prestaria atenção porque objetos não falam, e quando falam as pessoas fingem não ouvir". O que fazer com o tempo que lhe resta? Luta para não permitir que a tristeza o obscureça: luta por um caminho que acolha a vida. Erguido sobre um emaranhado de nós, como uma longa e delicada trança, o romance de Adriana entremeia as vidas de David e de Alex, e a elas mistura as de Trung, Huong e Linh, entre outros personagens. Para se contrapor à grande desordem que a doença lhe trouxe, David se fixa em uma ideia: a de que, quando ele fechar os olhos, o mundo continuará a existir exatamente como é. "Quem foi que disse que seu mundo é mais relevante, sério ou verossímil do que o mundo dos outros?" A consciência de si é a consciência de nossa insignificância.

Já Alex – para quem tudo importa e o mundo não passa da soma de coisas pequenas – envolve-se cada vez mais com o rapaz. Pouco importa se David tem, muitas vezes, o "desejo de derreter na chuva", interessa, sim, que ele continua vivo. Claro, na mente de David as coisas começam a se embaralhar. Dúvidas graves aparecem. "Como é que aquilo que era se torna o que não é mais?", ele se pergunta. Sem compreender o fio que ata vida e morte, ele deseja apenas que a despedida seja doce. Pergunta, então, a Alex para onde ela iria se pudesse fazer uma viagem. Precisa de um sonho, nem que seja de um sonho emprestado. Ela, sem vacilar, pensa na terra de seus antepassados: Hanói. "Eu preciso ir para algum lugar quando deixar o apartamento. Queria que alguém escolhesse para mim". O destino de seus últimos "quatro ou cinco meses de vida" está traçado. Hanói se torna a Terra Prometida – embora não passe, hoje, de uma caótica metrópole de 7 milhões de habitantes. Transforma-se na utopia que manterá David amarrado à vida. Não é algo que ele descobre, é algo que ele inventa. Se é possível continuar a inventar, ainda é possível viver.

Publicidade

Aos 32 anos, chega assim a seu próprio desejo. Alex ainda tenta convencê-lo de que lhe basta "imaginar Hanói". A imaginação tem suas vantagens: nela você tem como evitar as experiências desagradáveis. Mas David quer mais que a imaginação "pura", que não passa de uma anestesia. Busca a imaginação encarnada na vida. Reflete: "ir embora é uma história que você começa a contar e que, como o início de todas as histórias, vale não pelo que significa, mas pelo que pode vir a significar". A frase do rapaz vale também para o romance de Adriana Lisboa que, com uma narrativa armada sobre coisas humanas e comuns, nos transporta para muito além do que nos habituamos a ser. Existe outro papel para a ficção?