| Foto: Felipe Lima

Um amigo telefona do outro lado do Oceano Atlântico para comunicar que, segundo seu médico, está ficando surdo. É verdade que não anunciava nenhuma novidade – já havíamos conversado a respeito – mas mesmo assim falou num tom melancólico de quem espera algum conforto.

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Não me dei por achado. Disse a ele:

– Comemore. Com o mundo do jeito que está, com tanta porcaria sonora solta no ar, ficar surdo é uma bênção. A surdez vai te livrar de chateações, inclusive das novas duplas sertanejas, dos cantores românticos, dos discursos políticos, das pregações evangélicas. Portanto, fique feliz!

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Acho que fiz bem, pois ele deu uma gargalhada estrondosa. Num mundo abarrotado de ruídos endoidecidos, isso de surdez pode ser útil, concluímos.

Há muitos anos trabalhei na Aliança Francesa como bibliotecário. Jovem, tímido e ingênuo, fiquei comovido certa ocasião com um senhor francês, arquiteto, que surgia por ali a cada três dias ao lado de sua mulher. Ela falava alto, tinha opiniões constrangedoras sobre todos os assuntos, dava risadas sarcásticas, convertendo o mundo a sua volta num pandemônio. Ele, quieto e meio sonso, era surdo.

Fiquei triste com a surdez daquele homem. Entrava em silêncio, cumprimentava com um leve movimento de cabeça e ia bisbilhotar as estantes da biblioteca. Remexia nos livros, sempre achava um volume de poemas – amava Baudelaire e Rimbaud – e ficava a um canto lendo poemas enquanto sua mulher seguia em sua missão ensurdecedora de falar pelos cotovelos.

Seria um homem triste. Triste pela surdez, pelo isolamento do mundo, mas me parecia ter uma alma de poeta. Até que certo dia, quando eu também folheava um livro, ele se aproximou de mim. Fiquei tenso, pois não imaginava como conversar com um surdo, ainda mais em francês. Mas ele sorriu e, com voz calma, me perguntou o que estava lendo. Respondi que relia – tentando decorar – o poema de Verlaine, "Chanson d’automne", que até hoje considero o mais perfeito da literatura universal.

Ele se empolgou e me deu uma aula a respeito de Verlaine, insinuando educadamente que eu já saberia de tudo aquilo que estava me dizendo. Eu não sabia, é claro. Fiquei pasmo, não só com seu conhecimento de Verlaine, mas com o fato de que falava com elegância e ouvia perfeitamente.

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Assim ficamos num papo tranquilo, só atrapalhado pelo meu sofrível francês da época, que era capenga. Aliás, continua capenga.

Foi quando ouvi a voz de trovão de sua mulher. Atropelou nossa conversa sem cerimônia e disse que já estava na hora.

Ele colocou a mão no ouvido direito e perguntou:

– O que disse?

Ela subiu o tom:

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– Vamos embora!

Ele me olhou, sorriu e, com um sinal, deixou claro que voltaríamos a conversar. E saiu, como se diria em outras épocas, à francesa.

Só então fui descobrir o que todos ali na Aliança já sabiam. O triste arquiteto só era surdo quando sua mulher estava por perto. Escutava perfeitamente quando queria e era surdo ao que ela dizia, com o que mantinha a alma leve para se dedicar ao seus poemas e projetos.

Era, desta forma, um homem feliz. O que é raro.

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